Resenha | Neonomicon, de Alan Moore

Neonomicon chegou às bancas brasileiras, pela editora Panini e reúne duas séries escritas pelo inglês maluco e bruxo de plantão Alan Moore. O encadernado reúne as séries The Courtyard (O Pátio) e Neonomicon da editora americana Avatar Press lançados em 2010.

A capa da edição brasileira de Neonomicon

A obra trata de uma investigação sobre estranhos crimes que envolvem aspectos do universo literário fictício do escritor inglês Howard Philips Lovecraft e suas estranhas linguagens, criaturas e visão do universo.

A trama se divide em dois momentos bem distintos: no primeiro ato temos o detetive Aldo Sax investigando crimes macabros que a polícia acredita serem praticados por um serial killer, Sax também está na pista de uma droga chamada Aklo, possivelmente com alguma ligação aos crimes que investiga, essa pista o leva até Johnny Carcosa, provável fornecedor da tal droga.

O segundo momento da trama se foca nos detetives Brears e Lamper do FBI que, anos depois, se deparam com outras bizarrices que, provavelmente, podem ter ligação com os casos de Sax do primeiro arco, então recorrem ao auxílio do mesmo para tentar esclarecer algumas coisas.

O velho mago precisa ficar mais vezes endividado com o imposto de renda
O velho mago precisa ficar mais vezes endividado com o imposto de renda

Vou ser muito sincero a respeito de Neonomicon: não é ruim, mas também não tem absolutamente nada demais, nem de tão grotesco, nem de tão assustador, nem de amedrontador como há de sobra na obra lovecraftiana.

Vi ali só um apanhado de referências a algumas coisas de algumas obras, coisa para alegrar, como se diz na própria HQ, os iniciados. Ou seja, coisa para fã de Lovecraft identificar perdido ali na obra e se sentir feliz por reconhecer, aqui e ali, elementos dos mundos sombrios criados por Lovecraft.

Convenhamos, Alan Moore é um exímio referenciador de suas vastas pesquisas. Se o velho barbudo leu e pesquisou alguma coisa, pode ter certeza, estará de alguma forma referenciado, às claras, ou não, nas suas obras.

Como muito já se disse sobre Neonomicon, há muito mais coisa para explorar na obra de Lovecraft que a HQ de Moore deixa a desejar, como disse, não que seja ruim, mas quem vai até a obra de Moore querendo encontrar, pelas mãos do velho bruxo inglês, o terror, loucra e horror lovecraftiano em demasia pode morrer de sede.

O texto é bom, mas se arrasta em muitos pontos e parece que o negócio não vai engrenar em momento algum da leitura e o tão esperado terror e desespero lovecraftiano pode dar lugar ao tédio, apesar da insanidade estar ali, bem sútil, mas ali.

Não tenho nada contra diálogos, pelo contrário, são uma das partes que mais gosto em uma leitura, até porque os escritores de língua inglesa são bons criadores de diálogos e, claro, Moore é um desses caras bons no que faz. No entanto o traço do desenhista Jancen Borrows não combina muito com a temática do texto que ilustra.

É limpo demais, certinho demais, normal demais para uma HQ que, ao meu ver, deveria ser mais suja visualmente falando, mais sombria e pesada.

A respeito das cores, tudo fica artificial demais com elas e tudo tem cara de colorista que sabe o básico de Photoshop ou outro programa para edição e colorização de imagem, também dando ao visual da obra um aspecto séptico demais, artificial demais. Funciona? Sim, funciona tranquilamente depois que a leitura engrena, mas eu ainda acho que um Mignola faria maravilhas com um material desses no seu traço.

Quando o negócio engrena, ou parece engrenar, a tão polêmica cena do tão falado estupro grupal não me pareceu tão aterrorizante e “polêmica” quanto o que havia sido alardeado sobre as edições americanas. Tem sim sua carga de impacto, mas sinceramente, já vi histórias de terror/ horror de quinta com cenas de violência sexual mais pesadas do que as ilustradas por Burrows. Inclusive nada que uns bons títulos da Vertigo não façam… E até melhor, diga-se de passagem.

A trama é boa, como disse e faço questão de repetir, e a leitura idem, só que para quem vai, cheio de uma vontade de pegar uma típica história lovecraftiana, vai com certeza se desapontar com nada além de referências e um pouco, eu disse, só um pouco de mistério e sobrenaturalidade.

O macete é ir sabendo que o esporte preferido de Moore hoje é fazer referência e isso está lá e de modo bem feito na trama que envolve estranhos assassinatos, um dos idiomas malucos de Lovecraft, muitos personagens homônimos e situações que se reportam a obras específicas do conjunto de Lovecraft.

capa de NeonomiconA história é bem conduzida, já que Moore é um bom narrador, no entanto há muitas partes da HQ que parece que foram cortadas na edição brasileira, ou me pareceu isso, já que não vi o material americano, ou isso ou então é um relativo e interessante jogo de dizer as coisas pelo “não dito” da própria obra, deixando a cargo do leitor imaginar como certos fatos citados ocorrem, como no caso da mão do agente Perlman.

É um recurso bom, como disse, mas ainda assim me deixou com a impressão de algum corte abrupto para algumas coisas.

Outra coisa que, ao meu ver, prejudica Neonomicon é a questão da reação ao que acontece na HQ, a postura dos personagens não é lá muito crível diante das situações expostas no decorrer da trama.

Claro, estamos em um universo fictício, há situações que se justificariam pelas descrições dos personagens por si mesma, no entanto ainda assim há coisas ali que não são de fácil digestão para um ser humano que tivesse que passar por certas coisas e depois agir de forma tão, por assim dizer, natural.

Entrar nestes detalhes seria soltar muitos spoilers, então só lendo mesmo para saber do que estou falando.

Neonomicon vale como exercício criativo para o velho barbudão-bruxo-inglês-maluco, além de ter ajudo a pagar uma dívida com o imposto de renda, segundo o próprio Moore, como obra menor, nem adianta ir querendo encontrar um novo V de Vingança ou Watchmen, isso é um patamar que nem mesmo Moore pode atingir novamente.

NeonomiconMas há de se convir que Moore, com toda sua erudição autodidata, é capaz de produzir textos bons, intrincados, complexos e reflexivos até mesmo em trabalhos de mediano pra baixo, como é o caso deste Neonomicon que, a meu ver, é uma boa alternativa para quem quer dar, vez ou outra, uma fugida das mega-ultra-power-fuck sagas dos quadrinhos de heróis Marvel e DC, por exemplo.

Se eu recomendo? Sim, recomendo sim, já que fiz minhas ressalvas expondo o que acho positivo e o que acho negativo na obra, então é por conta e risco. Mas definitivamente Neonomicon não tem absolutamente nada demais que não haja em outras: violência gráfica, mistérios, referências aos nomes de monstros, personagens, situações, locais e criaturas lovecraftianas.

A diferença aqui que isso não é feito de forma velada e sim de forma escancarada, já que o Necronomicon tem sido citado exaustivamente há décadas fora da obra de Lovecraft, por exemplo, muitas das vezes como sendo algo de uma cultura qualquer e não uma invenção de Lovecraft.

Alan Moore já anunciou que Neonomicon vai ter mais uma parte, só que dessa vez se trata de uma obra cujo personagem principal é ninguém menos que H.P Lovecraft. Pelo que foi dito por Moore, é uma obra de tons que misturam biografia e ficção sobre como Lovecraft se tornou escritor. Ao todo serão 10 capítulos também publicados pela Avatar Press.

Convenhamos, um prato cheio para quem quer contra-argumentar sobre Moore e o fato de que ele adora usar a obra alheia como matéria prima de muitos de seus trabalhos (A liga extraordinária manda lembranças).

cena de Neonomicon

Ah, antes que eu esqueça, Moore deveria dar um tempo nessa sua mania de querer transformar em “erótico”, “sexual” e “pornográfico” tudo que anda escrevendo, nada contra uma putaria gráfica em quadrinhos, pelo contrário, o sexo e erotismo, desde que não sejam gratuitos, são sempre bem vistos (literalmente), em Necronomicon não há nada de gratuito nas cenas desse tipo, mas o que era uma diferencial pontual em algumas obras de Moore está ficando apelação e forçação de barra pela insistência do recurso.

 

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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