Você gosta de livros de bichinhos? Desses que mudam a vida das pessoas igual o cachorro Marley e seus trocentos derivados genéricos? Pois é, então essa dica de leitura não é para você. Esqueça os momentos divertidos ao lado dos cachorros trapalhões, bagunceiros que aprontam mil e uma confusões.
Substitua qualquer animal de estimação caseiro do tipo gato, cachorro, papagaio e derivados e afins, Firmin é um rato, desses de pelo negro que vive nas frestas, buracos escuros, frios e úmido; se alimenta de restos de comida, nasceu no porão da velha, porém bem sucedida, livraria Pembroke Books de propriedade do senhor Norman Shine em Boston nos anos 60.
Firmin, o rato devorador de livros
Esqueça as receitas fáceis da amizade entre seres humanos e animais, a começar por Ratatouille, por exemplo, e o próprio Marley.
Aqui o terreno é o da fábula, mas da fábula do tipo que um Kafka poderia ter escrito. Mas, sobretudo, Firmin, o livro, é uma grande e honesta homenagem ao ofício de leitor, daqueles apaixonados por um bom livro, pela textura, cheiro e gosto do papel, pois Firmin, o rato que dá nome ao livro, começou sua vida tendo como seu primeiro alimento as páginas do Finegans Wake, o poderosíssimo e ousado romance de James Joyce que, na verdade era também seu berço.
“Joyce foi um dos grandes. Talvez o maior de todos. Eu vim à luz, fui ninando e mamei na carcaça desfolhada da obra-prima menos lida do mundo”, diz o rato, ao contar, quase em flashback, sua vida e trajetória.
Como toda boa fábula, desta vez contemporânea, claro, Firmin aprende a ler, aprende a apreciar a boa literatura e os Grandes, como ele costuma chamar os grandes autores cujos livros ele devora lendo e depois comendo mesmo.
Alegórico do primeiro ao último parágrafo, Firmin, o livro, é repleto de passagens que demonstram a grande erudição de Sam Savage, o autor.
Savage é doutor em Filosofia pela Universidade de Yale e, exatamente por isso, demonstra ser grande conhecedor dos pequenos dramas pessoais que muitas das vezes afetam a alma humana e, no caso de Firmin, o rato, sua alma humana prisioneira de um corpo de camundongo.
Entre seus muitos sonhos e fantasias ele é Fred Astaire.
Repleto das pequenas alegrias, tristezas, sonhos e melancolias de uma vida solitária, Firmin passa os dias imaginando uma vida humana, com as belas mulheres de filmes pornográficos que assiste todas as noites no velho cine-teatro Rialto, do outro lado da praça.
Suas musas, é assim que ele as chama. No chão do velho cine-teatro é onde o pequeno rato também encontra boa parte de seu alimento depois que aprendeu que saborear os livros tem um resultado melhor quando os deixa inteiros após a leitura.
Entre seus sonhos e vislumbres Firmin cria uma amizade imaginária com Norman Shine, proprietário da livraria. É o primeiro humano por quem Firmin se apaixona e, obviamente, se decepciona profundamente ao ponto de chamar Norman apenas pelo seu sobrenome o restante do livro todinho.
O segundo humano por quem Firmin se apaixona é o escritor de ficção Jerry Magoon, cuja obra principal versa sobre uma invasão alienígena que tem os ratos como principais protagonistas, não à toa Firmin encontra naquele humano que mais parece um mendigo uma cara metade.
É ao lado de Jerry que o pequeno rato tem os melhores dias de sua vida e porque, em suas próprias palavras, abandona seu estilo de vida burguês. Mas Firmin, o livro, não é uma obra de momentos duradouros e a vida cobra os preços devido para o pequeno rato.
A região onde se encontra a livraria, o Rialto e praticamente todo o bairro estão em “quarentena” e prestes a ruir em uma grande reforma urbana que demolirá tudo.
A livraria seca, o cinema já quase não tem mais seus visitantes noturnos e a comida é escassa. Sem seus dois amigos os tons melancólicos de Firmin se adensam, literalmente seu mundo começa a ruir junto com a praça, seu microcosmos e tudo que viu a vida toda.
Metáfora da condição humana, do desejo de ser outra coisa, de viver aventuras, de ser um dos Grandes, de amar e ser amado intensamente, Firmin, o livro, é uma ótima leitura.
Como homenagem aos apaixonados pelo ofício de leitor, não há como não se sentir dentro da cabeça do pequeno rato que quer ser humano e ser amado como realmente é: um rato morador ilegal, vagabundo, vadio, pedante, voyeur, roedor de livros, sonhador ridículo, mentiroso, charlatão e pervertido, mas ainda assim fascinante, fascinante e complexo como deve ser um rato que sabe ler.
P.S.: às vezes fico me indagando se Firmin teria coragem de comer certos livros que saem atualmente por aí…
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.