O livro é: Algo sinistro vem por aí de Ray Bradbury

O escritor americano Ray Bradbury dispensa apresentações. Aclamado por crítica e público há longas décadas, seu nome é uma referência para os fãs de sci-fi ao redor do mundo.

Dentre suas obras de grande apelo junto aos consumidores do gênero, se destacam Crônicas Marcianas (1950) e Fahrenheit 451 (1953), com amplo destaque para o segundo, um cânone da ficção sobre utopias futuristas.

Detalhe da capa nacional de
Detalhe da capa nacional de “Algo sinistro vem por aí”

Mas essas obras dispensam, ao menos por hora, o foco deste texto, estamos aqui para Falar de outro livro: “Algo sinistro vem por aí” (1962), incursão que Bradbury faz ao universo do estilo “dark fantasy”, lembrando bastante a obra “O circo do Dr. Lau” de 1935, escrito por Chales G. Finney (leia mais AQUI).

Em “Algo sinistro vem por aí”, Bradbury abandona seus temas de sci-fi hard para direcionar seu olhar para um típica cidade do interior dos EUA, dessas que a gente costumava conhecer bem de diversos filmes, daquelas que todos se conhecem e trocam amenidades pela rua.

No centro da história estão dois garotos, também típicos desse cenário interiorano: Jim Nightshade e Will Holloway, amigos inseparáveis de aventura, estudo, vida pessoal.

Nascidos com pouco tempo de diferença um do outro, Will nos últimos segundos de 30 de outubro, Jim nos primeiros de 31 de outubro, ou seja, no Halloween. Um prenúncio de que, desde o nascimento, algo realmente sinistro esperava por esses dois meninos completamente comuns.

Ray Bradbury
Ray Bradbury

Situado aproximadamente nos meados da década de 60, o contexto do livro se reporta a um tempo em que as atividades circenses e de parque de diversão itinerantes era bem comum pelo território americano, sobretudo no período do verão, época de férias escolares no país.

Justamente nesse contexto é que a cidade de Will e Jim recebe a visita de um desses parques de diversão e suas inúmeras atrações: Show Pandemônio das Sombras, Cooger & Dark – Fantoches, Circo de Marionetes e Seu Parque de Planícies.

Estranhamento o trem de transporte chega pontualmente as 3 horas da madrugada de um dia atípico para os dois garotos que, ainda durante o tarde, trocaram conversa com um vendedor de para-raios exóticos, já que, segundo suas próprias palavras, uma tempestade se aproximava e um raio cairia sobre a casa de um dos garotos.

Entusiasmados, os garotos embarcam na previsão e colocam o para-raios sobre a casa de Will e segue-se o dia na aparente tranquilidade. Curiosos, os meninos se dirigem para o ponto de parada do obscuro e silencioso trem nas horas da madrugada em que a cidade todo dormia.

Ao som de música de órgão, os Will e Jim se deparam com um sombrio espetáculo de montagem das estruturas e brinquedos, um estranho e negro balão sobrevoando tudo e inspecionando, das alturas, a pequena cidade em seu sono.

E, na manhã seguinte, o espetáculo começa e junto com ele o sinistro do título do livro, uma citação de Shakespeare, vai se mostrando pouco a pouco nos acontecimentos dentro e fora da área do parque.

Um carrossel que gira ao contrário, o Homem Ilustrado, a velha Bruxa do pó, o labirinto de espelhos, o Senhor Elétrico, o Bebedor de Lava, O Esqueleto…

É bem difícil falar de Algo sinistro vem por aí sem soltar milhões das pequenas surpresas que Bradbury vai construindo parágrafo a parágrafo durante seu trajeto narrativo, diga-se, muito bem conduzido com doses de suspense e tensão a medida que as bizarras situações da obra vão se conectando com a vida dos dois garotos.

Antes de ser uma obra de fantasia negra, Bradbury nos presenteia com uma bela história de amizade, dessas que tem confiança mútua, pontos em comum e acima de tudo, diferenças de toda ordem, a começar pelas personalidades de Will e Jim: o mais velho é mais retraído, mais tímido, o mais novo mais apressado, imprudente.

algo sinistro vem por ai
Capa da edição nacional

Além da relação de amizade, o tema caro a Bradbury neste livro é sobre desejos, os mais sombrios, daqueles que pagaríamos determinados preços para termos algo que não se deve ter e nesse rumo a história se constrói na tensão entre os dois garotos, o pai de Will e as criaturas macabras que circulam pela cidade enquanto alguns de seus moradores misteriosamente desaparecem, mas sobretudo o confronto se dá contra o Senhor Dark, o Homem Ilustrado.

Nesse quadrilátero, que alterna o confronto entre seus vértices, é que se sustenta o charme da história.

As diferenças entre Will e Jim, entre Will e seu pai, um homem já cansado e pai tardio que, até então, evitava certa aproximação com o filho, e por fim a parte mais interessante de tudo, o confronto do trio, ora separadamente, ora em conjunto, com o enigmático Senhor Dark, o Homem Ilustrado, cujas tatuagens parecem ter vida e vontade próprias.

A cena do desfile das atrações do parque em busca dos garotos na cidade é simplesmente espetacular e prende o leitor em uma espiral crescente de tensão e apreensão a cada passo dado no que, muitas vezes, parece um embate no tabuleiro de Xadrez. É o mestre Bradbury nos lembrando porque é um mestre.

Conduzido com simplicidade e objetividade, o livro não é um conto de terror, nem de horror, é fantasia mesmo, mas que não perde brilho e nem intensidade em seus tons de obscuridade e de tensão crescente, uma vez que a sensação passada pela narrativa de Bradbury nos dá uma noção do poder que o parque de diversões exerce sobre a pequena cidade, como se fosse algo maior, mais denso, antigo e poderoso do que a própria humanidade e além de qualquer limite ou lei.

Ao se apossar dos muitos casos de desaparecimento e outras bizarrices que envolviam os antigos parques e circos itinerantes dos EUA, o autor acaba nos trazendo aquele velho e constante medo infantil de tudo que é localizado às margens do mundo normal: o feio, o grotesco, o obscuro, o mórbido, o que está nas sombras e não tem local fixo, tudo aquilo que se alimenta de medo, dúvida e terror infantil.

Como dito mais acima, falar do que acontece no livro é entregar muitas das pequenas coisas que Bradbury quer nos contar, e não quero tirar esse prazer do velho mestre estragando as coisas neste texto, já que é apenas uma recomendação e não uma pretensa crítica.

De crítica mesmo tenho só em relação a edição brasileira que contém vários erros de digitacão em muitas de suas páginas, em outros casos palavras incompletas ou ausentes do texto. Como não tive contato com o texto em inglês, não me arrisco a opinar sobre a tradução, mas acredito que esteja bem feita.

Nada que tire o brilho da história, mas que ficou com cara de desleixo por parte dos editores e revisores da Bertrand Brasil isso ficou. Também acho que a obra merecia uma capa melhor, ao contrário da proposta extremamente genérica de “cara de palhaço sinistro com lona de circo”.

No mais, a obra também ganhou uma adaptação cinematográfica pela Disney com uma produção modesta em 1983.

Fica a dica para os grandes estúdios es conglomerados de entretenimento olharem novamente para a obra de Bradbury, já que a onda dos reboots, remakes e adaptações continua, os atuais recursos da computação gráfica poderiam auxiliar e muito na construção das bizarrices criadas no livro.

Sem esquecer um sem número de filmes e outras obras que se inspiraram na temática a partir do que foi exposto em Algo sinistro vem por aí.

Boa leitura e cuidado com seus desejos.

 

Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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