Em setembro de 2011 a editora de quadrinhos americana, Dc Comics, iniciava uma drástica e ousada mudança em sua linha de publicações: toda sua cronologia, ou a quase totalidade dela, seria completamente zerada e relançada novamente a partir de toda uma nova conjuntura e um status quo completamente renovado, com algumas origens reformuladas, personagens completamente renovados tanto no conceito quanto no visual e alguns completamente desaparecidos até então.
Houve até a reinclusão definitiva de personagens do selo Vertigo ao universo Dc padrão: Monstro do Pântano e Constantine voltaram ao mesmo universo de Batman e Superman, expandindo a proposta do novo UDC e dividindo em áreas bem definidas como a cidade de Gotham sob influência da bat-família, Metrópolis sob influência da super-família, o lado mitológico mais voltado para Aquaman e Mulher-Maravilha, aventuras mais espaciais com as tropas dos lanternas verdes como foco, aventuras mais de ficção com personagens como Flash, Jovens Titãs, as duas equipes Legiões (Perdida e dos Super-heróis) e o Stormwatch, no lado obscuro o trio Homem-Animal, Monstro do Pântano e Constantine comandam a farra do plano místico da nova Dc.
Com exceção de boa uma parte da cronologia do Batman e dos Lanternas Verdes, todo o restante do UDC mudou de forma drástica após os acontecimentos da saga Flashpoint (Ponto de Ignição no Brasil). Algumas dessas mudanças foram extremamente positivas e outras nem tanto nos muitos testes e equipes construídas para alavancar o novo patamar da casa de Superman e companhia.
Personagens como Mulher-Maravilha e Aquaman, a despeito de serem parte da Liga da Justiça, até então não haviam emplacado há longas datas bons arcos comandados por boas equipes e adivinha só, o reboot consegui colocar esses dois personagens em posição de destaque e importância no novo status da Dc, e não só isso, as mudanças também os colocaram em destaque no top de vendas do período. Período esse que, vale frisar, a Dc abocanhava posições e mais posições no Top 10 americano, deixando para trás na maioria dos casos a rival Marvel Comics que, há anos, liderava quase sempre as primeiras posições nas vendas.
Títulos como os já citados Aquaman e Mulher-Maravilha dividiram posições privilegiadas com títulos como Action Comics comandada pelo aclamado Grant Morrison e o Batman de Scott Snyder e Greg Capullo, dupla que deu um gás renovado ao morcegão com sua bat-saga da “Corte das Cojuras”, remexendo, inclusive, na própria história de Gotham City, tanto no passado quanto no presente e claro, outro sucesso de vendas foi a Liga da Justiça ao comando de Geoff Johns e Jim Lee, onde nos foi mostrado a formação da super-equipe de forma em seus momentos inicias e de forma bem embaraçosa e amadora, já que essa formação se dá no que cronologicamente é considerado os primeiros anos do novo UDC.
Já em janeiro de 2012, com o lançamento das edições de número 5 dos Novos 52, a Dc pegou todas, isso mesmo, todas as 10 posições do ranking de vendas americano… não acredita? Então veja com seus próprios olhos a tabela de classificação do ICV2 no link (AQUI).
Apesar de todo o alarde sobre os projeto “The New 52” da Dc Comics, o leitor mais antigo sabe que este não é o primeiro reboot da editora em seu universo, para citar dois exemplos, um bem emblemático e outro dispensável, temos Crise nas Infinitas Terras da década de 1980 e Zero Hora nos anos 90.
Ambos “zeraram” numerações, reconfiguraram personagens e, tinham por princípio, arrumar a casa, coisa que, diga-se, é bem complicada em se tratando da Dc Comics que tem em seu panteão um dezena, senão uma centena, de personagens adquiridos de diversas outras editoras ao longo de décadas de existência.
Fawcet Comics, Charlton Comics e Wildstorm são só alguns dos exemplos mais comuns e conhecidos entre os fãs da Dc Comics que integraram a cronologia da editora e que bagunçaram seu multiverso e suas infinitas Terras, gerando sobreposições e eliminações cronológicas que deixariam até mesmo o pessoal do Planetary, os arqueólogos do impossível, meio perdidos na hora de traçar uma linha lógica no meio desse labirinto que é a história da própria Dc.
Bom, a iniciativa dos Novos 52 não arrumou por completo a casa nas bandas da Dc, ainda tem coisa complicada e os personagens que compunham o contexto da Sociedade da Justiça, por exemplo, passaram para a chamada Terra 2 e novamente temos mais de uma Terra após uma saga que, tinha por objetivo, minimizar os problemas com tantas realidades como é a cronologia Dc.
Mas até aí tudo bem, o material é bom e está rendendo… e falando em material rendendo, entre os novos 52 títulos da primeira onda do relançamento, uma boa penca deles já foi para o limbo dos cancelamentos. No teste e erro da editora, enquanto uns galgaram o patamar de estrelas de mercado, outras coisas no projeto foram naufragando vertiginosamente e mal conseguiram completar sequer seu primeiro ano de vida. Em muitos desses casos o leitor chega até a agradecer a editora pelos cancelamentos dada a ruindade de certas coisas.
Para esse pacote da terra dos pés juntos foram coisas como Sr. Incrível (que de incrível mesmo só tinha a cara de pau da Dc em permitir que isso tivesse sido feito), Liga da Justiça Internacional, OMAC, Super-Choque, Men of War, Homem Ressurreição, Rapina e Columba (do eterno “mestre” Rob Liefeld), Voodoo (e eu me pergunto até hoje que diabos essa personagem tinha para estar entre os 52 novos títulos da DC), Capitão Átomo, Blackhawks, Eu, Vampiro, Besouro Azul, Exterminador ( título com o pior desempenho de vendas do reboot após a entrada do “mestre” Liefeld no texto e “arte”), Fury of the Firestorm, The Savage Hawkman, Ravagers, Sword of Sorcery, Grifter (Bandoleiro), Legion Lost (Legião Perdida) e Team 7 são os que ainda consigo lembrar por ter elencado a lista ao longo desses dois anos de “velhos 52”.
Prontamente novos títulos foram postos para substituir cada perda ao longo desses dois anos, mantendo assim o absurdo leque de 52 publicações mensais, mas confesso, não faço mais a menor ideia de quem entrou e de quem saiu nesse samba do afro-descendente doido.
Apesar da lista acima ter sido carinhosamente feita durante os primeiros meses do reboot e depois com uma peneirada mais recente, o número de títulos que entrou me escapou com facilidade, ou melhor, não me interessou muito mesmo, não. Apesar de toda problemática envolvendo esses títulos, há um certo lado positivo nisso tudo que a Dc vem fazendo: o público não comprou? Cancela e pronto, e o mais rápido possível.
Para os que, por algum lampejo de loucura tenham se apegado a alguns desses personagens, a editora os remanejou para outros títulos como é o caso de Liga da Justiça da América que recebeu, pro exemplo, o Hawkman e o Caçador de Marte. Mesmo com todo o número inflado da cartela editorial da Dc, o básico continua funcionando muito bem obrigado.
Batman tem seu microverso quase isolado do restante dos demais heróis com exceção, claro, da bat-família que conta com seus integrantes de sempre como Asa Noturna, Batwoman, Batgirl, Aves de Rapina, Robin, Batwing, Capuz Vermelho e claro, uns quatro títulos solo do homem-morcego com amplo destaque para o título escrito por Snyder do qual falei mais acima.
O escritor ao lado de Greg Capullo emplacaram duas micro-sagas no batverso que tiveram ampla repercussão de crítica e público mesmo a despeito dos finais anticlimax de ambas: A corte das corujas e Morte em Família remexeram com muita coisa a respeito do homem-morcego e a última abalou toda a conexão da bat-família.
Do lado iluminado da Dc, o Superman também conta com seu microverso e tem sob seu emblema seu próprio título, ao lado de Superboy que também integra a equipe dos Jovens Titãs, sua prima a Supergirl e o título Action Comics escrito por Grant Morrison que conta os primeiros momentos da carreira de Kal-El como um vigilantes mais enérgico e ligado aos pobres, fracos e oprimidos antes de se tornar a figura simbólica de um ser quase divino, a fase de Morrison no título foi elogiadíssimo e lembra bastante a tônica do personagem na era Siegel e Shuster.
Mais um título veio integrar a super-família e se trata de Superman Unchained escrito por Snyder e com Jim Lee no traço, dando lugar para que o brasileiro Ivan Reis assumisse o título da LJ, para a tristeza dos fãs de Aquaman que ficou ano e pouco sobre o traço do brazuca.
Seguindo os moldes que fizeram sucesso em Batman, a super-família também ganhou sua saga particular chamda H’el on Earth (um desses trocadilhos que só tem sentido em inglês e que brincam com o nome do personagem H’el e a palavra Hell – inferno em inglês – e aí fica assim, superlegal né?).
Mas como nem todo macroverso se sustenta de microversos em ebulição isolada, já está a todo vapor a mega-saga Trinity War que põe boa parte do novo UDC para se estapear por conta das travessuras de Pandora, uma das entidades que tem forte ligação com o reinício cronológico da DC.
Sem esquecer que já está também deixando aflitos leitores do mundo todo a saga Forever Evil, na qual os vilões mais importantes de cada título do novo UDC assumem as capas das revistas, deixando seus respectivos heróis em segundo plano no chamado “mês dos vilões”.
No campo mais cósmico e espacial, a banda dos Lanternas Verdes também se expandiu no reboot, seguindo a estrutura pré-reboot com várias tropas se relacionando entre si num carnaval colorido. Dentre os títulos, os lanternas foram os menos “reinicializados”, haja vista que os reboot eliminaria todo o contexto do surgimentos das demais tropas e com isso uma boa leva de leitores sumiria do mapa muito provavelmente.
Entre as muitas tropas existentes, apenas a dos Lanternas Vermelhos ganhou título próprio sabe-se lá por quais motivos…
No lado mais obscuro, além do próprio Batman, existe todo um terreno místico, sobrenatural e mágico do novo UDC pelo qual trasnitam Homem-Animal, Constantine, Frankenstein, Ressurreição, Liga da Justiça Sombira, o Desafiador, os vapmpiros, Cavaleiros do Demônio e o excelente Monstro do Pântano em elogiadíssima fase também por Snyder.
Nesse terreno todo o lado místico da editora tem sua força em uma abordagem que lembra bastante o próprio selo Vertigo e suas temáticas mais obscuras, não à toa dois dos personagens mais emblemáticos do selo adulto voltam a integrar o mesmo background cronológico dos super-heróis de uniforme colorido.
Mais recentemente o aguardado título “Batman & Superman” fez uma ótima estreia revelando o primeiro encontro da dupla. O título já é sucesso nos EUA e emplacou bem seu primeiro número, seguido de perto por Superman Unchained no mês de seus lançamentos, propositalmente colados ao lançamento do filme Man of Steel da Warner Bros, dona da DC.
Mas mesmo com tudo isso, é interessante notar como personagens como Aquaman, Flash e Mulher Maravilha, mesmo sendo integrantes da LJ, sempre estiverem em segundo plano na Dc de antes, mas no reboot, sob a direção de equipes mais à vontade, os personagens renderam bons frutos, sobretudo os realmente reformulados como é o caso de Aquaman que ganhou imponência no traço de Ivan Reis e no texto de Geoff Johns, e pode-se dizer com facilidade exatamente o mesmo da Mulher-Maravilha de Brian Azzarello (roteiro) e Cliff Chiang (desenho), que deram à princesa-amazona um lugar realmente emblemática no panteão de sua própria mitologia de origem, bem como no contexto geral do novo UDC, inclusive com o tão alardeado romance entre a amazona e o último filho de Krypton nas páginas da LJ.
Muita coisa ainda está fora de eixo no status quo pós-reboot, o novo UDC ainda parece um colcha de retalhos com umas boas áreas bem costuradas e com tecido de primeira, em contrapartida o que é feito com tecido de terceira é descosturado do conjunto da obra por algum motivo: equipes ruins, personagens descaracterizados demais ou com pouquíssimo apelo comercial e multimídia, acabam saindo de cena rapidamente e, para suprir a lacuna de manter o absurdo número de 52 títulos mensais, a DC Comics prontamente tira da sacola outro material que, a meu ver, igualmente sem apelo, sem cuidado e sem conteúdo para sustentar uma série mensal sem muito foco, sendo apenas um tampão para manter os 52 títulos nas bancas.
É exatamente por isso que, mesmo depois de dois anos, o novo UDC (novo?), continua com cara de colcha de retalhos ou de quebra-cabeças com peças faltando para que o todo pareça realmente uma totalidade coesa. algo sai de cena e logo em seguida outra coisa completamente diferente é posta ali para suprir uma lacuna que nem precisava ser tão rapidamente remediada se a Dc se planejasse melhor em relação aos seus títulos menores.
Não à toa a editora tem sido, ao longo destes dois anos de reboot, criticada pesadamente por escritores e desenhistas por sua mão editorial pesada, divergências entre o escalão de comando e a linha de produção acarretaram em pedidos de saída e uma dança das cadeiras nas equipes criativas pior do que a de títulos sendo cancelados.
Mesmo depois desses meses, por incrível que pareça, o relançamento da DC ainda tem um certo frescor de novidade, a Dc tem sido tido sua cota ousadia, errando muito, mas dando frutos mais que compensatórios em seus acertos, haja vista que a Dc faz parte do mega-grupo de entretenimento Warner Bros que não está brincando em serviço e caça, insistentemente, novas e lucrativas oportunidades de fazer grana em esferas simultâneas de atuação.
Talvez esse seja o maior desafio da nova (tá, nem tanto assim), conjuntura do UDC: ser celeiro de ideias capazes de estar em múltiplos espaços midiáticos, tirando seus personagens das páginas bidimensionais para os espaço tridimensional de games, para a telona dos cinemas, para as animações do mercado de homevideo e assim sucessivamente, por um bom punhado de anos, pegando um público mais jovem e intimamente ligado com o fluxo entre mídias característico do século XXI que tem, inclusive, na web, um novo espaço de troca de ideias entre consumidores e produtores de conteúdo.
Como campo de testes, as Hqs estão aí servindo de terreno de cultivo para novas empreitadas, dar um reboot em quase tudo de uma vasta cronologia é uma estratégia mercadológica complicada e focada no novo leitor, que consome rápido, que sai da sala de cinema e quer ver no gibi quase que exatamente a mesma coisa da telona e vice-versa e, em um mundo cheio de uma cronologia de 75 anos de acontecimentos, isso seria bem difícil de operacionalizar.
Entre erros e acertos acho que estes dois são um empate técnico, com uma leve vantagem ainda para lado do leitor, seja o novo ou o antigo, já que ambos tiveram, ou tem ainda, a oportunidade de conhecer ou reconhecer o UDC pós-reboot em suas melhores partes como o Batman e o Mônstro do Pântano de Snyder, o Aquaman de Johns e Reis, a Mulher Maravilha de Azzarello e Chiang, o Homem Animal de Lemire, o jovem Superman de Morrison e tantos outros bons títulos que realmente trouxeram um novo gás ao UDC que, em alguns pontos, já estava com ares de naftalina e desgastes, porque não dizer, em crise. Sem esquecer que ninguém é obrigado a ler lixo ou porcaria tendo a oportunidade de ler todo um novo contexto em construção.
Preciso alinhavar a colcha melhor? Sim, sem dúvidas, mas nem antes do reboot era toda essa organização que estão procurando, então não há motivos para desespero diante de coisas fora de lugar ou completamente diferentes, afinal de contas, ninguém recomeça a contar histórias e as conta exatamente do mesmo jeito, se fosse assim, então não era um reinício, não é mesmo?
Agora vamos torcer para que os planos de um desses infinitas Crises, e são muitas na Dc, estejam longe da nova cronologia 52, e que eles desistam logo desse número imbecil e comecem a focar definitivamente em produzir material realmente significativo como seus títulos mais rentáveis e criativos e varrer de vez para baixo do tapete as coisas genéricas e sem identidade. Na próxima parte de nosso especial tem Novos 52 no Brasil pela Panini Comics.
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.