Homem-máquina é o quarto livro do escritor australiano Max Barry. Resultado de um experimento no site do autor, o livro, antes de ser livro, claro, tinha ali no site uma página publicada por dia e o autor recebia dicas e sugestões dos leitores para a trama e o texto de forma geral, aproximadamente nove meses depois o material foi adaptado por Barry para virar um livro propriamente dito…
Talvez aí resida a grande fraqueza da obra: ter deixado essa liberdade da web passar em demasia para o campo do mundo material.
A premissa é interessantíssima, dialoga com o tempo e o lugar da própria obra, é atual, é recente, é leve, é simples, é uma boa leitura, mas talvez por ser tudo isso, Homem-máquina seja ameno demais; ao dar voz ao estilo dos textos do navegante web, Barry alivia seu material final demais, o deixa contemporâneo demais e isso é perigoso. Homem-máquina, a despeito de ser uma obra excessivamente atual, vai datar e vai pro limbo das obras que dialogam bem demais com seu tempo, quando na verdade, deveriam transpô-lo, extrapolá-lo para não datar.
Homem-máquina tem a premissa básica de pensar o ser humano do começo do século XXI, boa parte de seus ansios, sua maneira de pensar sua própria vida e tudo isso atrelado ao aparato tecnológico que nos cerca, como dependemos das máquinas e como elas estão aí tanto para o bem quanto para o mal em nossas vidas. Justamente neste contexto conhecemos o engenheiro Charles Neumann, empregado da empresa de tecnologia Futuro Melhor que realiza simultaneamente diversos projetos nas mais variadas áreas da pesquisa tecnológica.
Charles é um uma pessoa extremamente anti-social, um chato, um mala, uma pessoal intimamente ligada aos objetos, máquinas e coisas sem vida, sem emoção e sem reações imprevisíveis, exatamente como ele. Charles não era uma pessoa querida na escola, não tinha amigos, não tinha namoradas, não era popular e isso tudo é extensível a sua vida adulta, substituindo o ambiente escolar pelos da vida de um adulto, em especial o ambiente de trabalho, o único que parece existir no mundo de Charles.
Viciado em seu celular, Charles depende do aparelho para tudo, ou quase tudo: ler notícias, saber da previsão do tempo, ver vídeos e todas essas coisas que os celulares fazem atualmente, inclusive chamadas telefônicas.
O leitor já vai saber disso logo nas primeiras páginas do livro que é narrado em primeira pessoa pelo próprio Charles, o que, para mim, é o primeiro ponto fraco do livro.
Fica pessoal demais, intimo demais e exatamente por isso, por essa forçada na aproximação, o material enfraquece, pois Charles realmente não é legal como pessoa e menos ainda como personagem de um livro de sci-fi… outro problema, Homem-máquina parece que não se decidiu a que estilo de texto quer pertencer, ao final das contas.
Bom, o que segue a chatice de Charles em busca de seu celular é o acidente de trabalho que leva uma de suas pernas… calma gente, isso não é spoiler, está na contra-capa do livro e é o estopim para o que realmente importa… sem perna, internado em um hospital, Charles conhece a especialista em próteses Lola Shanks.
É amor a primeira vista e vai se tornando recíproco a medida que o livro avança. Daí em diante é um sobe e desce na qualidade narrativa da obra, marcada por uma série de acontecimentos previsíveis até mesmo para um leitor mais desatento ou menos afoite por sci-fi, alternados com algumas boas e pontuais surpresas aqui e ali ao longo da história de Charles, Lola e alguns dos personagens secundários mais rasos que já vi em um sci-fi nos últimos anos.
É questão de pouco tempo até Charles eliminar, planejadamente, sua outra perna para suprir as reas necessidades de um ser humano com uma “falha”, como ele mesmo costuma dizer.
Calma, isso também não é spoiler, é coisa básica ainda… ao desenvolver sua primeira perna biônica, Charles percebe uma série de falhas e limitações e resolve ter duas pernas mecânicas e para tanto elimina tranquilamente sua outra perna boa, justamente nesse intuito do auto-aperfeiçoamento físico através de novas melhorias protéticas, mesmo que para isso tenha de excluir outras partes de seu corpo por conta própria.
Charles retorna o trabalho, vai se apaixonando cada vez mais com Lola ao ponto de envolvê-la em sua restrita vida ao espaço da própria empresa onde trabalha, já que neste espaço, todo um parque de pesquisas é desenvolvido para dar suporte ao novo trabalho do engenheiro: design de partes cibernéticas e aperfeiçoamentos diversos.
Melhoramentos para pele, braços mecânicos, “olhos” melhores e por aí vai… e nesse entrementes o leitor conhece as motivações de Lola e seu passado, ou seja, os fatos que a levaram ao caminho da especialização em próteses para amputados.
Confesso, achei forçado, achei exageradamente nonsense e até mesmo absurdo, infelizmente falar sobre essas motivações, de forma mais detalhada, é um spoiler relativamente chato, pois estraga uma certa surpresa para a obra.
Homem-máquina não é um livro ruim, até dei uns risos durante a leitura, mas parece que nunca engrena de verdade, parece que não evolui e não sai do círculo vicioso e chato que é estar ali perto de Charles Neumann, o texto simples demais pode agradar muito o leitor geral, que não é fã de sci-fi especificamente, ou que não tem um elo muito forte com o hábito da leitura e lê meio que esporadicamente um livro aqui outro ali.
Há momentos que tenho a nítida impressão que Barry tentou, a duras penas e sem sucesso, criar um novo Arthur Dent (Guia do mochileiro das galáxias) com seu pateta e antipático Charles Neumann; com a diferença de que Douglas Adams era muito, muito bom no que fazia quando o assunto era sarcasmo, humor negro e ironia.
A própria essência da obra parece querer flertar com esse público médio e geral, os personagens parecem não ir a lugar algum de forma evolutiva e por vezes tanto o elenco principal quanto alguns dos coadjuvantes simplesmente se tornam rasos demais, ou então simplesmente passam a ser caricatos demais dentro de um obra que tenta a todo custo ser uma ficção com pés fixos nos preceitos de uma ciência e de uma tecnologia real e presente, ou seja, a tecnologia atual.
Daí temos um tipo de contrassenso na lógica interna da obra: de um lado processos críveis, possíveis, lógicos e passíveis de execução no mundo real; do outro lado temos personagens que parecem saídos de alguma comédia absurdamente boba e simplória, dessas da Sessão da Tarde, e não uma obra de sci-fi contemporânea.
O próprio Neumann tem umas mudanças bem estranhas durante o decorrer da obra toda, dando sérios sinais de inconsistência como personalidade… o que é um agravante em se tratando do personagem principal da obra e nada mais nada menos do que seu narrador também.
Ok, o leitor pode dizer que qualquer um sem suas duas pernas pode ter uns surtos e tudo mais, e justamente essa é a questão, não tem surto nenhuma dos que provavelmente deveriam ocorrer… posso estar sendo exigentemente chato com o livro, mas sinceramente?; ele dá margens demais para isso.
Homem-máquina parece um daqueles livros feitos para pegar as pessoas no embalo do boom das nerdices, é cheio de piadinhas, sacadinhas, tiradinhas e tem em Charles Neumann o perfeito nerd-loser de anos atrás e que consegue, sabe-se lá como, a atenção da lindinha Lola Shanks mesmo sem suas duas pernas. Pois é, a mim, parece muito uma tentativa de recriar a dinâmica existente entre nossos amigos Dent e Tricia do já citado Guia do Mochileiro das Galáxias.
Entre os altos e baixos, o livro também parece não se aprofundar verdadeiramente no tema da relação entre homem e máquina, claro, o título do livro carrega em si várias implicações e dubiedades, porque Charles pode ser tanto homem-máquina por possuir agora melhorias mecânicas em seu corpo, como também pode ser homem-máquina por sua mente científica, ações lógicas, pouca ou nenhuma emotividade e claro, zero em termos de relacionamentos humanos; mas para um livro que dizem ser o “romance cyborg que faltava”, acho que falta na obra muito de “homem” e muito mais ainda de “máquina” para merecer este título.
Claro, com os pés no chão, seria injusto comprar Homem-máquina com um, por exemplo, Neuromancer, primeiro e maior romance cyberpunk da história. Essa falta de identidade do livro de Max Barry é algo chato em um livro, porque você não sabe se pensa nele como ficção, como um romance, como uma comédia contemporânea, como uma crônica ficcional moderna, como um diário ficcional ou sei lá mais que tipo de termo se possa inventar.
Ok, sobressair amarras de gênero é algo realmente bom e são poucos os que conseguem fazer isso e ao final entregar ao leitor algo realmente bom, original sem parecer uma colcha de retalhos mal costurada… Max Barry não é esse autor e Homem-máquina não é essa obra. Já que o livro não se resolve bem em nenhum dos campos pelos quais passeia.
Repito, não é um livro ruim, é uma boa leitura, é leve e tudo mais, agradável na maior parte do tempo, só que é isso tempo demais e tudo parece arrastado e perdido nesse excesso de leveza; inclusive quando deveria tratar ao menos em alguns pontos as coisas de uma formais incisiva, dando real impacto e implicações ao desenrolar das ações.
Se eu recomendaria o livro? Sim, para quem quer só ler algo leve, divertido, sem grandes pretensões, então vá em frente, Homem-máquina agrada, mas é só… agora se você procura algo mais elaborado, mais reflexivo, ou mais dinâmico, ou mais complexo, esqueça as peripécias de Neumann e suas pernas do barulho.
Mas um mérito eu não tiro de Homem-máquina… na verdade dois: 1) não costumo me preocupar em ler livros muito recentes ou lançamentos, tenho a impressão que estou perdendo um tempo relativamente precioso que poderia investir na leitura de um clássico desses inesquecíveis, Homem-máquina me fez furar a fila, pois me agradou na premissa… 2) me fazer escrever sobre algo que não me empolgou verdadeiramente após a leitura; acreditem, foi um grande exercício furar a fila de obras para dar passagem aos senhores Max Barry e Charles Neumann. Infelizmente, saí dessas experiências bem frustrado, pois ficou, sim a sensação de que poderia ter lido outros livros antes desse…
E para fechar, volto ao começo do meu texto: Homem-máquina vai ser um daqueles livros passageiros, que faz um alarde por ter nascido na web de forma compartilhada entre o autor e seus leitores, mas que vai fatalmente perder sua força de obra atual justamente por ser, pasmem, excessivamente atual, ou seja, o tempo vai destruir o presente que está na obra e vai criar outro sutilmente diferenciado, tornando a Homem-máquina um ponto datado e fixo no seu próprio espaço-tempo.
Ficha técnica:
- Título: Homem-máquina (Machine man)
- Autor: Max Barry
- Número de páginas: 288
- Ano de lançamento: 2011 (EUA) e 2012 (BRA)
- Editora (BRA): Intrínseca
- Tradução: Fábio Fernandes
- Formato: 14 x 21 cm
- Gênero: Ficção
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.