Snow Crash já foi eleito um dos 100 melhores romances do século XX em língua inglesa pela revista Time (lista de 2005), também carrega consigo o pesado título de “último romance cyberpunk lançado”.
Não faz jus a nenhum dos dois… sendo o segundo muito mais uma mera convenção, ou mercadológica ou didática apenas. Isso faz de Nevasca um livro ruim? Com certeza não, apenas super-valorizado, mas não ruim; mesmo com suas muitas falhas.
OBS: Este texto foi escrito com base na primeira edição da Aleph, posteriormente fiz edições alterando a palavra “Nevasca” para Snow Crash, título original da obra que a editora passou a adotar a partir da segunda edição; você talvez tenha chegado até aqui justamente pela ocasião de lançamento desta terceira edição de 2022.
Ok, não sou um cara de querer livros sem falhas, isso é até meio imbecil da parte de qualquer tipo de apreciador. Um furo de roteiro, um personagem mal desenvolvido, um capítulo inútil ou alguma situação que não acrescenta nada ao desenvolvimento narrativo é coisa comum a qualquer livro. Snow Crash não escapa a esta regra e tem todas essas coisas juntas… Normal. Dito isto, vamos ao que interessa.
Nevasca é a tradução para Snowcrash, aquele chuvisco que dava nas tvs antigamente quando um canal saia do ar… algo similar ao que acontecia nos antigos computadores Macintosh, situação que é a grande referência para a obra. Um crash no sistema e boom, tudo estava fora do ar.
A tradução do título acabou eliminando alguns dos conceitos abordados na obra e algumas coisas acabaram soando estranhas no primeiro momento, mas as notas de rodapé vão nos orientando aos poucos da situação e vamos no familiarizando com as mudanças necessárias ao título traduzida.
Poderia ter ficado Snow Crash mesmo, não faria mal nenhum.
A primeira coisa que interessa saber da obra de Neal Stephenson é que ela é muito boa, no entanto Nevasca padece de um excesso de ser cool o tempo todo, de ser cult a cada novo conceito ou personagem que o autor nos apresenta… e acredite, ele nos apresenta muitos.
Chega uma hora que você não sabe mais se Steaphenson está realmente narrando sua história de forma séria e coerente ou se está constantemente tirando um sarro com o leitor, com a literatura de Sci-fi em geral ou se está fazendo tudo isso ao mesmo tempo em uma narrativa que já flertava com a desconstrução e com o fragmentário de uma época pré-internet comercial (Nevasca foi lançado nos EUA em 1992).
Logo de cara, quando estamos lendo as primeiras páginas de Snow Crash, a sensação que se tem é essa de sarro constante. Todo o lance com a entrega de pizzas para apresentar a máfia, o protagonista da obra e de como ele conhece sua coadjuvante ao final da sequência maluca que abre o livro parece só isso: piada… em muitas ocasiões uma daquelas piadas bem forçadas.
Nessa parte toda você fica conhecendo um pouco sobre Hiro Protagonist (o herói protagonista de Nevasca no que é claramente uma “sacadinha cool” do autor para sacanear a narrativa clássica com seus heróis protagonistas) e do outro lado a dita coadjuvante YT (trocadilho para whitye, algo como Branquinha na gíria afro-americana).
É importante notar que até mesmo entre esses dois personagens as regras da narrativa são constantemente quebradas, pois os rótulos de protagonista e coadjuvante são, o tempo todo, mandados às favas por Stephenson que joga o tempo todo sua narrativa para diferentes focos.
Ora a ação é toda focada em Hiro, depois um capítulo inteiro em YT, volta para Hiro, segue para alguma situação completamente estranha e mirabolante que serve apenas para contextualizar o universo do livro e depois volta para um dos dois personagens principais da obra.
Ok, vamos focar em Hiro e YT. Hiro é mestiço de afro por parte de pai e coreano por parte de mãe; ele anda sempre com duas espadas samurais: uma katana e uma wakizashi. Hiro é um samurai das ruas, um tipo de mercenário que vende seus serviços em Los Angeles, local da maior parte da ação de Nevasca.
Hiro já foi policial, entregador de pizzas para a máfia (calma, falo disso mais adiante), promoter de uma banda de rock e um dos maiores hackers do Metaverso, a versão de Steaphenson para o mundo virtual. Em Nevasca o Metaverso é o cyberespaço, o mesmo que a Matrix é em Neuromancer de William Gibson (lançado em 1984) e o mesmo que a Grade é no filme Tron, por exemplo.
Nosso Protagonist, por sinal, é um dos programadores responsáveis pela criação do próprio Metaverso. Hiro é uma das coisas que me incomodou muito durante a leitura de Snow Crash, pois fiquei constantemente me perguntando como alguém consegue ser um expert em técnicas de combate samurai com katanas e ainda consegue ser um dos melhores programadores hackers vivos atuante.
Imagino, dentro de minhas limitações, que tanto ser um exímio samurai espadachim e um hacker de primeira qualidade sejam duas coisas que demandem um tempo absurdo para adquirir conhecimento, técnicas, estilo próprio e claro, aprimorar tudo isso.
Sem esquecer as outras ocupações de Hiro, dentre as quais está caçar informações e fazer upload para a biblioteca de dados da Central Intelligence Corporation – CIC, uma espécie de órgão que ganha dinheiro através do acesso pago a esses bancos de informações disponibilizados por hackers free lancers ou pelos próprios empregados da CIC.
Resumo, Hiro foi criado como uma grande piada e isso é evidente depois de algum tempo de leitura… depois, ou antes, sei lá, você pode até pensar pensar que Steaphenson estava falando muito sério quando inventou tudo isso para seu herói e tocou um foda-se para a lógica e a coerência entre ser hacker e ser samurai, enquanto você passa horas navegando pelo Metaverso coletando dados para vender por aí.
YT por sua vez é uma garota de 15 anos, trabalha como kourier, uma espécie de entregador skatista da empresa Radicks. No trânsito caótico das vias privatizadas de LA no universo de Snow Crash, os kouriers são uma ótima opção de entrega rápida, são os office boys definitivos.
Vestida em seu macacão cheio de truques e apetrechos tecnológicos, YT é outro personagem que parece pura paródia de bad girl futurista: peita a tudo e a todos, tem sempre uma resposta sagaz e uma tiradinha de onda com qualquer pessoa por mais perigosa que seja, dos mafiosos aos traficantes de rua, dos caras da CIA aos policiais, qualquer um em contato com a “branquinha” vai ser fatalmente ironizado e humilhado com gestos e palavras, não importa o quão perigoso seja.
Toda vez que YT aparece nos seus capítulos de destaque é o que sobra: petulância, arrogância, tiradinha de onda, uma sequência de ação e um corte narrativo de volta para Hiro.
O background de Nevasca, como já disse, é praticamente todo na cidade de LA. Nesse mundo ouvimos falar dos EUA como um todo completamente desmembrado com suas partes e pedaços territoriais vendidos a todo tipo de franquia.
Nesse contexto o que temos são pequenas partes-territórios sob propriedade de algum tipo de corporação como a Cosa Nostra, a máfia que entrega pizzas, um grande conglomerado empresarial-familiar com franquias espalhadas por todo o antigo território dos EUA.
Temos também a Hong Kong do Sr. Lee, especializada em tecnologia e dona das Coisas-Rato, tem também os Portões Celestiais do Reverendo Wayne, uma espécie de “fast food” religioso, tem o cartel de drogas dos Narcolombianos e por aí vai.
Cada franquia dessas é como uma cidade-estado com suas próprias leis, força policial e diretrizes, todas querendo se matar, caso seja possível.
Em Snow Crash elas são chamadas também de Franchulados, um trocadilho para Franchise e Consulado… sacou? sacou? Mais uma “sacada genial” do nosso sagaz autor.
O conceito é ótimo. Imagine só os EUA todo picotado, vendido em partes para corporações de todo tipo e afogado em uma imensa crise inflacionária… pois é, é esse o mapa que Nevasca nos traz da grande potência ali por meados de, pasmem, 2010…
É isso mesmo, Nevasca deve se passar por volta desse ano, já que o pai de Hiro lutou durante a Segunda Grande Guerra Mundial, ecos da guerra do Vietnã ainda são sentidos e Hiro tem, ao que tudo indica, uns 34 a 35 anos, já que é dito que o mesmo nasceu na década de 1970.
Ok, dou um desconto para o “futuro” de Steaphenson, pois não é bem um futuro, e sim mais uma realidade alternativa com alguns saltos tecnológicos aqui e ali, mas nada tão mirabolante a ponto de dizermos que o autor acerta ou erra em suas previsões, já que, a meu ver, ele não tenta fazer isso em momento algum. Ponto para ele. E, convenhamos, é meio besta essa história de ficar catando “acerto de previsão em Sci-Fi”.
Dando o desconto do excesso de “sacadinhas e tiradinhas” para ser cult, Nevasca é rico em seu próprio metaverso e nos mostra a todo instante uma fauna e uma flora cheios de conceitos, aplicações e ideias divertidas. A própria trama da obra é rica em complexidade e tem uma narrativa igualmente complexa, cheia de quebras sequenciais, detalhes e uma conspiração absurda rolando ao logo das quase 500 páginas do livro.
É essa conspiração que enreda Hiro e YT e mais uma miríade de situações e personagens ora interessantes, ora completamente idiotas em situações idem. O excesso de personagens que entram e saem de cena até começa parecendo interessante, mas chega um momento que você esquece que alguns deles passaram por sua leitura enquanto outros apareceram para dar desdobramentos importante ao processo narrativo e depois somem abruptamente do mapa como Juanita, ex-namorada de Hiro, depois ex-esposa de Da5id Meier (assim mesmo, com esse 5 aí no meio), hacker tão ou mais habilidoso quanto Hiro no Metaverso.
Fatalmente Da5id é uma das primeiras vítimas humanas a ser infectada por pelo vírus conhecido como Snow Crash, um vírus que, através da interface do Metaverso pode “infectar” o cérebro de hackers a partir de sua estrutura binária. Da5id tem sua função clara na trama: mostrar o Snow Crash em ação dentro do Metaverso, depois disso ele sai de cena…
Juanita, por sua vez aparece, faz tipinho, caras e bocas, fala bonito, entrega a Hiro uma cartão virtual com uma pilha de dados chamada Babel/Infocalypse e some para só aparecer fazendo algo em prol da narrativa do livro lá pelas 60 páginas antes do final…
O próprio “vilão” do “filme”, um motoqueiro psicótico chamado Corvo é outro amontoado de absurdos de todo tipo… o cara caçava baleias (ele é um aleuta), anda com uma bomba nuclear acoplada em sua moto e é a linha de frente de L. Bob Rife, uma espécie de mega-empressário do ramo de telecomunicação e fibras óticas.
Rife também é uma espécie de líder “religioso” e dono do Enterprise, um porta-aviões que viaja mundo afora coletando refugiados por aí como uma grande favela fluvial e levando-os para o que sobrou do território americano após um longo percurso de volta.
A trama básica de Nevasca gira em torno da conspiração absurda que envolve um culto religioso, uma droga física chamada Snow Crash, um vírus de computador também chamado de Snow Crash, a CIA e bombas nucleares, incluindo-se a que está na moto do Corvo que, depois de um tempo, parece que foi esquecida por Steaphenson em algum lugar por aí.
Como temática geral não tenho medo de dizer que Snow Crash é ótimo, no entanto peca como estrutura narrativa. O excesso de informação inútil da obra chega a ser irritante, bem como os personagens que entram ali só para fazer tipinho sem dar uma evolução real ao material da trama que, complexa por si só, vai se arrastando em coisas como a história de um merdinha qualquer dentro da máfia que tem de entregar algo para alguém e, chegando lá, descobre-se que estavam esperando que YT fosse fazer a entrega e não o dito merdinha (Frank “o bombado”, ou alguma idiotice do tipo).
Isso tudo para apresentar depois o Tio Enzo, o dono da franquia mafiosa Cosa Nostra de entregas de Pizzas… de dispensável para baixo e umas boas 10 páginas de livro sem sentido algum do ponto de vista narrativo.
Isso só não é pior do que as páginas gastas para falar sobre um memorando dentro da CIA que versa sobre como as pessoas deveriam usar os rolos de papel higiênico nos banheiros do prédio. Uma das coisas mais imbecis que já li nos últimos anos… não, calma, acho que empata com a parte dos piratas querendo comer bundas em alto mar.
Do outro lado temos as partes de pesquisa histórica as quais Steaphenson dedica atenção e erudição soberbas para falar da torre de Babel, da Suméria, do deus Enki, do culto a Asherah, do surgimento de formas de linguagem (o que parece ser uma grande paixão do autor) e de como isso tudo está relacionado tanto com o Snow Crash virtual quanto com o Snow Crash real.
Tudo isso explanado em extensas conversas entre Hiro e um programa de computador chamado Bibliotecário. Coisa de primeiríssima qualidade para quem gosta de relacionar aspectos históricos com ficção.
Aí do nada corta para alguma coisa maluca como YT entrando em uma grande extensão de terreno baldio para conseguir comprar Snow Crash (a droga), fazer tipinho de bad-girl fodona de 15 anos enquanto Ng, um vietnamita cyborg sem pernas e braços e todo conectado ao seu grande furgão que mais parece um tanque de guerra bota pra fuder numa mini-guerra contra os traficantes-vendedores e seus atiradores de elite.
Tudo para conseguir uma amostra física da droga que depois não tem resultado algum de forma direta na trama, só cena foda de ação mesmo… segue cena de ação e depois mais uma penca de teoria da conspiração suméria de como transformar linguagem em vírus biológico e coisas do tipo. Segue mais cena de ação com Hiro indo de encontra ao Enterprise que ainda estava em alto mar, toma tiro, espadada, navios piratas comedores de bunda afundando, gente sendo arpoada pelo Corvo… coisa normal em Snow Crash.
Como disse anteriormente, o livro está cheio de boas ideias, passagens memoráveis, umas cenas de ação muito boas e bem descritas, completamente focadas no desenvolvimento da trama e com alto teor de violência condizente com o contexto social mostrado como um todo.
O problema de Snow Crash parece ter sido o fato de que Steaphenson correu a rédea solta na hora de entregar seu material final sem uma boa olhada editorial para limpar coisas aqui e ali que só foram enxerto e enrolarão pura.
Se o foco fosse a trama complexa da conspiração, a relação das duas variantes de Snow Crash e a Jangada (modo como se referiam ao Enterprise), Nevasca poderia ter sido algo no mesmo nível de Neuromancer. Mas não é.
Vale a leitura? Sim, com certeza vale, mas acho que se as expectativas forem menores, o apreço pela obra fluí mais facilmente e a apreciação se dá num nível mais amistoso e tolerante com as besteiras que pulam na cara da gente como se fosse coisas geniais.
Snow Crash é o típico exemplo de autor canibalizado por sua própria generalidade e que vai escrevendo e pondo ideias no papel enquanto a narrativa, a alma de todo bom livro, vai ficando em segundo plano em prol da exposição das meras ideias legais que o autor tem.
Esse fato fica mais que evidente quando você nota ali pelas 40 páginas antes do final que ele está sendo apressado, forçado, empurrado nas poucas páginas que sobraram para dar um desfecho minimamente decente a tudo aquilo que o autor detalhou exaustivamente o livro todo.
A conclusão do livro é anti-climática, o que nos é entregue nos 45 do segundo tempo deixa a desejar ao que nos é entregue página a página; o que é uma grande pena quando você olha para aquele tijolo de papel em suas mãos e nota que umas 130 páginas das 440 do total poderiam ter sido redirecionadas para um fluxo narrativo melhor e com foco desfecho da trama complexa que deixa pontas soltas no final e situação inconclusivas em boa quantidade.
Ok, o autor já havia deixado claro que estava quebrando e brincando com a narrativa o tempo todo, já num prelúdio do hipertexto tão alardeado na era virtual, mas ainda assim estamos falando de um livro que tem uma narrativa e, infelizmente, essa narrativa ficou prejudicada em seu desfecho após páginas e páginas de tantas ideias fantásticas.
De 0 a 10? Nevasca leva um 6,5 pela proposta geral, ambientação e trama. O livro é aquele típico livro que, comumente, tem resenhas pomposas e cheias de frase frescas e do tipo “um caldeirão de referências pop/cult que fervilham no metaverso do real e no imaginário cyber-contemporâneo”… coisa de gente lesa.
Não integra a lista de indispensáveis com toda certeza, mas se você pegar em uma promoção por aí, vá em frente, a parte lá dos Sumérios, Enki e os nam-shub são ótimas mesmo e um samurai mestiço e hacker é algo bem divertido se você desprendido das amarras de um Neuromancer, por exemplo, coisa da qual eu não consegui me desvencilhar.
Snow Crash, de Neal Stephenson
- Autor: Neal Stephenson
- Gênero: Ficção Científica, Cyberpunk
- Tradução: Fábio Fernandes
- 2º Edição
- Ano: 2008
- Número de páginas: 440
- Acabamento: Brochura e lombada quadrada
- Editora Aleph
- Formato: 16x23cm
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.