True Detective Especial | Luz, trevas e uma narrativa sobre narrativas

Era tudo a mesma coisa, tudo o mesmo sonho.
Um sonho que tiveram dentro de uma sala trancada.
Um sonho sobre ser uma pessoa.
E, como em muito sonhos, há um monstro no fim dele.

Se fosse necessário escolher um tema para dizer qual é o foco principal da série True Detective (TD), eu arriscaria dizer que esse tema é sobre tudo que está às margens… pessoas, coisas, mundos inteiros, realidades inteiras, narrativas, detalhes, a visão e a vida de tudo que está ali, bem às margens dos nossos sentidos primordiais, que existe mas não é notado até que simplesmente suma definitivamente.

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True Detective , uma narrativa sobre narrativas

Criada por Nic Pizzolatto, que escreveu todos os 8 episódios, toda a primeira temporada foi dirigida por Cary Fukunaga e teve em destaque como protagonistas os Detetives Rust Cohle e Marty Hart (repesctivamente  Matthew McConaughey e Woody Harrelson) completamente submersos em uma viagem de 17 anos pelo tempo para solucionar estranhos casos de assassinato e desaparecimento envolvendo rituais de magia negra, satanismo, ocultismo, características de assassinatos em série e o envolvimento de escalões do poder para impedir o andamento da investigação.

Com saltos no tempo, a narrativa de TD fala basicamente sobre outras narrativas. A linha mestra principal é traçada a partir do momento em que o caso investigado por Cohle e Hart é reaberto pela dupla de investigadores Maynard Gilbough (Michael Potts) e Thomas Papania (Tory Kittles) que empreendem um complexo interrogatório para averiguar a solução dada aos crimes ocorridos na Lousiana muitos anos antes.

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O ponto onde tudo começa

Com esse curso inquisitório, o espectador vai vendo o presente das falas de Hart e Cohle explicando sobre o andamento das investigações na ocasião em que o primeiro corpo é encontrado de joelhos diante de uma grande árvore em uma passagem inóspita e silenciosa, com marcas de violência e símbolos pelo corpo, estranhas esculturas feitas de galhos de madeira ao redor da cena e uma galhada sobra a cabeça.

Repleta de simbolismos, a cena perturba de imediato a dupla de detetives e coloca de alerta o departamento de policia local, o que acaba levando os protagonistas a outro caso de desaparecimento misterioso.

true detective especialO foco da investigação dos detetives Gilbough e Papania é entender o processo empreendido por Cohle na condução do caso do assassinato de Dora Lange que acabou sendo relacionado com o desaparecimento da jovem Marie Fontenot anos antes, caso arquivado pelo departamento de policia da Lousiana.

É pela perspectiva inicial do interrogatório que o espectador vai sendo arrastado, no bom sentido, para um fluxo de perspectivas alternantes entre os fatos, quem os vive e como eles são contados e o que realmente aconteceu no passado.

Com sua estrutura pronta para ser narrada em 8 episódios, TD foge do padrão de seriado policial com seu caso semanal a ser resolvido, aqui a espinha dorsal é um único caso e múltiplos olhares.

TD é um daqueles produtos criados para ser, sobretudo, uma experiência sensorial. Sua narrativa se apoia acima de tudo na maneira como a história nos é revelada a partir da multiplicidade de olhares sobre os acontecimentos.

Veja bem, a atração não são os fatos em si, mas sim o processo pelo qual eles são revelados. As locações da série acabam funcionando como um personagem a mais no seriado, reforçando constantemente uma sensação de abandono, de silêncio, de penumbra constante e deterioração.

O vazio populacional das locações torna toda a situação da série extremamente plausível, haja vista que o estilo de vida mostrado na tela coincide com as pessoas que vivem às margens de tudo, ignoradas por aqueles que deveriam protegê-las ou ao menos evitar que fossem apenas números em alguma estatística qualquer.

Não sei qual a história ocupacional da Lousiana, mas não há como negar que a direção de arte e fotografia da série deram ao lugar um tom cinzento e melancólico, como se o espaço, o clima e o tempo do local refletissem um estado de espírito e um senso de tristeza constantes, de um cinza quase onipresente. Abandono e deterioração física e mental coincidem nas várias camadas visuais e textuais da série dando a tudo uma unidade extremamente coesa.

Apesar de ter uma dupla de protagonistas, desde o primeiro episódio fica evidente que TD é sobre o distante, complexo e frio Rust Cohle, magistralmente construído por McConaughey. Não que Harrelson careça de talento, muito pelo contrário, mas fica evidente que Cohle é um personagem com muito mais camadas para encorpar a história, enquanto Marty é algo bem mais comum e simples de se entender: casado, pai de duas meninas, marido promíscuo e dado a repentes de violência e descontrole emocional que podem ser vistos em qualquer americano como ele.

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A dupla de detetives em meados dos anos 90

Rust Cohle com seu caderno de anotações é o responsável por muitas das camadas e subcamadas do texto, cuja função principal é adensar o clima onírico da série mesmo nos momentos de tensão.

Também são do personagem as reflexões e análises ditas em diálogos ou monólogos cheios de pensamentos e princípios filosóficos e metafísicos; em muitas de suas falas podem ser percebidas referências que podem ser pesquisadas e desdobradas pelo espectador para ir além das primeiras etapas do texto principal de TD.

Enquanto Cohle é complexo por sua profundidade, Marty é seu exato oposto, sendo justamente aí que reside o ótimo trabalho de Harrelson, dando a  McConaughey o exato contraponto para equilibrar a balança; se não fosse Marty e sua normalidade, seus problemas familiares, conjugais e toda sua banalidade, Cohle não seria absolutamente nada em tela.

true detective especialHá um sem número de ocasiões nas quais ambos sustentam sequências inteiras de falas e diálogos sem ajuda de nenhum outro interlocutor captado pelas câmeras dado o empenho e a elaboração do contexto narrativo de TD que, além do belíssimo trabalho de fotografia, conta com diálogos e monólogos complexos, afiados e cheios de um cinismo cortante…

Seria mesmo Cohle um tipo de Nietzsche como afirma cinicamente um dos interrogadores? E suas falas e ações, pensamentos e atos niilistas? Não sei, mas o personagem de McConaughey dispara pérola atrás de pérola quase toda vez que resolve falar algo.

Não há como não sentir um certo vazio no olhar de Cohle quando fala de sua esposa e filha, ou então quando ela fala da Teoria M, do tempo e de tantas outras coisas.

A dinâmica entre os dois personagens segue uma curva crescente de tensão até o ponto de ruptura justamente para marcar o momento no espaço e no tempo necessários para que o espectador compreenda como e porque há tanta desconfiança para com a dupla após anos do encerramento do caso investigado por eles.

No entanto, antes disso cada ação da dupla em prol do caso vai guiando o espectador para uma série de pequenas surpresas e, ouso dizer, para um anticlímax antecipado, mas que se compensa no episódio final da temporada… explico.

Ao encontrarem as pistas para chegar ao seu primeiro suspeito na tentativa de não serem postos fora do caso, Marty e Cohle se apressam, adentram o cerco da floresta, confrontam uma parte do mal que os assola, saem vitoriosos e tropeçam mais adiante num equívoco que nós, do outro lado da quarta parede, já sabemos de antemão que foi cometido e eis a grande surpresa narrativa de TD: nós sabemos de tudo de um certo modo.

Como disse anteriormente, TD não é sobre revelações bombásticas e surpreendentes, TD é, sobretudo, focada no seu processo de contar uma história a partir da múltiplos focos, é no ato de contar a história que o seriado se constrói e funciona.

Não precisa ser um grande cinéfilo, nem um grande leitor da literatura Noir para entender um princípio como este, o bom espectador da boa narrativa sabe que o(s) suspeito(s) de qualquer história está(ão) dentro dela de algum modo e até já cruzaram nosso caminho, assim é em TD, o que poderia ser desanimador para muitos é na verdade um motivador para seguir o caminho até Carcosa, até o centro da espiral, até o fim do caminho para dentro do coração da escuridão.

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Cohle está mais abatido, Marty mais gordo e calvo… a ação do tempo é implacável.

True Detective: sob o signo do Rei de Amarelo

Ah Carcosa… com essa pluralidade narrativa no tempo, no espaço e nos personagens, TD também flerta com o universo fora da própria obra ao emprestar do livro “O Rei de Amarelo” de Robert W. Chambers (publicado em 1895) aspectos fantásticos e oníricos. Envolto em uma áura de complexidade e mistérios, o livro é objeto de inspiração para autores como H.P Lovecraft, Neil Gaiman e Stephen King.

E é perceptível mesmo a presença de aspectos narrativos destes autores no seriado quase que constantemente, sobretudo quando pensamos nos detetives ao melhor estilo dos personagens lovecraftianos, por exemplo, que adentram em suas buscas apenas para sucumbir as revelações de suas investigações sobre algo maior além de sua compreensão.

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Capa do livro “O Rei de Amarelo” da editora Intrinseca.

Mas na verdade o que temos é a influência de Chambers na obra de Pizzolatto que dá aos seus Verdadeiros Detetives uma aura quase sobrenatural no trato para com sua investigação; sobretudo quando Cohle ainda sente os efeitos das drogas que teve de usar em seus anos como agente da Narcóticos culminando com suas visões e alucinações durante sua investigação.

As influências do Rei de Amarelo estão presentes constantemente no seriado e são justamente esses os elementos que dão ao mundo real da série um aspecto de sobrenatural, antinatural.

Você sabe que TD não é sobre fantasmas, mundos paralelos, espectros maquiavélicos protoplasmáticos, seres sobrenaturais ou algo do tipo, mas você sabe que está ali um mal constante, incessante e que gera um sentido de urgência, de pressa, de ação imediata para sair da espiral que traga os personagens para dentro de um mundo quase fantasmagórico e labiríntico, no qual os poderes ocultos não são de algum tipo de demônio assombrado ou imaterial, mas de homens cuja posição política dentro da sociedade lhes permite agir como tal, ocultando seus pactos e ações dentro da escuridão.

O mal presente em TD tem esse sentido abstrato e agigantado pelo aspecto estético dado a narrativa da série, mas é palpável ao redor da investigação essa grandiosidade do assassino e daqueles ao redor dele e que, de algum modo, são tão responsáveis pela maldade praticada quanto o próprio.

O próprio Cohle deixa isso evidente quando, em uma das sessões do interrogatório fala sobre sonhos e monstros, de repente a câmera está numa floresta e Reggie Ladoux surge a primeira vez diante de nós, lança um olhar ao redor e sentimos diante de nós um dos monstros que o detetive cita em seu monólogo.

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Se fosse para escolher um segundo ponto temático para esta primeira temporada, sem sombra de dúvidas eu diria que esse tema é a eterna luta do bem contra o mal, da luz contra a escuridão (e mais uma vez Cohle que nos diz isso), mas veja bem, não estamos falando do mal ancestral e sobrehumano que, por exemplo, encontramos na obra lovecraftiana (inspirada na obra de Chambers, lembram?); aqui é um mal palpável, pois falamos do mal humano, do mal da loucura, da impunidade, aquele mal que visa destruir justamente aquilo ou aqueles que ninguém nota ou com quem ninguém se importa…

Não deixa de ser um mal ancestral, concordo, no entanto estamos falando daqueles cuja maldade é praticada com intenção e premeditação, o mal causado para ferir, destruir e invocar, por sua vez, algo realmente maior, já que os crimes praticados tem toda a questão ritualistica/ocultista… a própria vida dos protagonistas é sufocada por algum tipo de corrupção banal e inteiramente humana.

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A bem da verdade TD é sobre pessoas, os seres humanos em sua totalidade e simplicidade. Marty e Cohle não são heróis, ao contrário, são apenas dois policiais cheios de falhas, com suas vidas em pedaços por motivos diversos e que usam o próprio trabalho para fugir da realidade comum e banal.

A ineficácia para as relações humanas, o casamento em cacos, as escolhas equivocadas, a traição latente, a solidão, a perda dos entes queridos e o fim da amizade são alguns dos pontos de ruptura entre a realidade palpável e a realidade maleável do caso que retorna anos mais tarde para ser solucionado por um já calvo e barrigudo Marty Hart e um magro e envelhecido Rust Cohle, mostrando mais uma vez ao telespectador o empenho da série em caracterizar seus protagonistas sob efeito pesado do tempo.

Depois de 8 episódias, cada um com um média de 55 a 57 minutos, qualquer texto sobre True Detective será sempre incompleto. A narrativa da série como dito anteriormente não tenta reinventar a Tv, mas não há como negar que temos uma construção complexa e bem encadeada, com fatos surgindo num instante no tempo e desvelados por outra ótica em outro espaço-tempo.

Uma situação completamente possível e dois personagens delimitados com primor tanto visual quanto psicológico, apoiados por um texto ágil, complexo e cheios de camadas e subtextos cujas referências e citações dão um ar a mais aos diálogos da obra. Tudo isso assentado em solo firme pelo elenco de coadjuvante que enriquecem os conflitos dado mais uma vez camadas a mais ao material principal.

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Fica difícil entrar em certos detalhes da obra sem estragar a surpresa do espectador, pois TD não se constrói em sua revelações e sim no ato de construção delas, no ato narrativo em curso.

O ato final é apenas o ponto de convergência de cada detalhe necessário para a construção desse ponto final, a grande mágica da serie é segurar nossas mãos e nos levar por esse estranho passeio pelas locações da Louisiana… caminho que a própria câmera se incumbe de percorrer uma última vez para nos lembrar que tudo ali tinha um caminho e um senso de ligação permanente. Inclusive entre Marty e Cohle.

Apesar de suas múltiplas camadas de sentido e significado, de um processo narrativo elaboradíssimo e diálogos cheios de subtextos, True Detective é uma obra de fácil apreciação mesmo em seus momentos mais lentos e intimistas, talvez a audiência mais massiva não se identifique com os protagonistas ou com as situações por eles vividas em uma narrativa enviesada no tempo e no espaço da obra, mas não há como negar, o aspecto imersivo da série é soberbo.

Feita como antologia, ou seja, muda tudo na próxima temporada que já tem suas primeiras novidades sendo divulgadas (AQUI), TD teve sua estreia americano em 12 de janeiro desse ano pelo canal HBO. Nós aqui na redação do PZ já estamos aguardando por essa próxima incursão, enquanto isso vamos ler “O Rei de Amarelo” e rever toda a Season 1 lá em Carcosa; tem muita coisa ainda para falar até 2015.

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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