O mundo é cheio de mistérios, isso todos sabemos. Lendas, mitos, folclores, invenções, crendices, rituais de todo tipo com os mais diversos fins estão em todas as culturas. Tem sido assim desde que o homem procurou dentro de si algumas respostas para as coisas que não entendia.
Explicar fenômenos da natureza dando a eles a personalidades de deuses, espíritos, criaturas sobrenaturais e muito mais antigas do que nós e que viviam na fronteiras entre este mundo e outros tantos além dos restritos sentidos que temos…
Então, A Voz do Fogo, primeiro romance em prosa de Alan Moore é sobre isso tudo, mais especificamente isso tudo ocorrendo ao longo de milênios no território de sua cidade querida: Nothampton, pequena cidade inglesa localizada na região de East Midlands e que é a capital do condado Northamptonshire.
Alan Moore dispensa apresentações de qualquer tipo e, se você já está aqui lendo esses parágrafos, então significa que você está fazendo isso ciente da importância do velho bruxo.
Como um dos pilares da chamada “invasão britânica” aos quadrinhos norte-americanos ao lado dos conterrâneos Neil Gaiman e Grant Morrison, o trio foi responsável por uma bela mudança na maneira de se escrever HQs na terra do Tio Sam.
Agora caso você tenha passado os últimos trinta e tantos anos em reclusão no Tibet, tenha sido abduzido, nascido há pouco mais de cinco anos ou simplesmente não se interessa por HQs de nenhum tipo, vá ali fazer uma busca sobre Alan Moore e volte aqui… vou ficar esperando.
Bom, esperei… agora sigamos a programação normal…
As artes místicas, ocultas, arcanas, sobrenaturais e afins sempre foram um tema presente nas obras de Moore, não à toa seu Monstro do Pântano é recheado desses temas, título inclusive no qual surgiu o mago John Constantine. Outras obras de Moore também dialogaram sobremaneira com o mundo místico como, por exemplo, a complexa Promethea.
Sempre auxiliado pelo seu detalhismo exacerbado e por pesquisas históricas extremamente obscuras, Moore também é um exímio construtor de obras cuja tônica é a mistura constante de fatos históricos com intricadas criações de sua própria mente. Para tanto o velho bruxo se utiliza de um recurso recorrente muito interessante em suas obras: o mundo se materializa e ganha significado pelas linguagens.
O uso da palavra, dos signos e significados é imprescindível para a construção de uma boa parcela do que Moore escreveu e escreve até hoje. É através da palavra, do grafismo, da pintura, da construção de uma estrutura qualquer, das tatuagens, do ritual da caça e do sacrifício que boa parte do mundo sobrenatural se materializa aqui diante de nossa percepção.
Tudo ecoa os sentidos ocultos do poder das palavras articuladas em alguma forma de linguagem. São essas mesmas linguagens que impregnam as mentes humanas e plantam em nós ideias, conceitos e princípios como se fossem um vírus que fica ali dentro incubado e na hora oportuna expele vez ou outra um arquétipo aqui e outro ali, vomitam um novo conceito calcado em algo antigo e primitivo que nos proporciona um reconhecimento ancestral e ainda assim completamente novo em muitas medidas.
Moore simplesmente renova nossas percepções dos significados primitivos e uma trajeto de mais de 6 mil anos de história.
Alan Moore fala, o fogo queima…
Em A Voz do Fogo, Moore vai justamente realizar esse trabalho de escavação, essa arqueologia arcana e pagã para recontar, em um misto de Facto e Fictio, as origens de sua amada Northampton.
Ao entrelaçar uma extensa pesquisa histórica com sua mais do que fértil imaginação, Moore vai tecendo uma complexa teia de significados e ressignificados de poderes ancestrais e da influência destes dentro da vida dos que passam pelo território de Northampton em vários períodos ao longo da história.
Ao todo são doze contos aparentemente distintos, distantes no tempo até mesmo por séculos, todos autocontidos, cada um deles relatando um momento histórico do território onde será/é a cidade.
Mas fica um aviso: diferente de outros livros de contos, as histórias de A Voz do Fogo, mesmo fechadas em si mesmas, não devem ser lidos fora da ordem, ao menos não acho que seja aconselhável, pois há elementos de conexão entre elas que são importantes para entender o contexto macro da existência da cidade e de seus mistérios.
As doze histórias do livro e seus respectivos protagonistas tem algo mais em comum do que a localização espacial do que viria a ser Northampton: todas essas histórias são marcadas pela presença do fogo e do que ele vem nos dizer sobre esse local, mas não é um fogo qualquer, é algo mais que vai se espalhando pela narrativa de Moore.
A voz que dá título ao livro é a voz de algo sobrenatural, antigo, viciado e que vem se manifestar de formas diferentes e sempre acompanhada por cães negros gigantes com olhos acesos ao lado de um estranho e primitivo bruxo cuja face é mais negra que a noite e de cujas frontes projetam-se chifres como galhos secos de antigas árvores.
Já é Moore brincado com o imaginário do leitor. Também são constantes os porcos utilizados em fins diversos, mas sobretudo em ritos de sacrifício…
A Voz do Fogo | Um desafio no começo
Ciente de seu papel como criador, Moore não se furtou mais uma vez ao dever de realmente criar. Há aqueles que escrevem livros como quem escreve um recadinho de post it. Aqui o jogo é outro e a mente criativa entre ação para propor uma verdadeira viagem pelo tempo.
Ao regredir para 4.000 A.C (segundo fontes que pesquisei, isso seria próximo do fim do chamado período Neolítico), o autor mais uma vez provoca seus leitores a percorrem um caminho complicado no jogo narrativo, talvez se fosse outro autor, a ideia soasse apenas pretensiosamente banal como eu mesmo achei que fosse logo nas primeiras páginas desse conto de abertura.
Ao dar voz a primeira pessoa do discurso (Eu), Moore instiga e inquieta seu leitor ao dar a seu personagem, um garoto primitivo, de fala igualmente primitiva e truncada, a difícil tarefa de narrar sua própria história pouco após o falecimento de sua mãe. Sendo órfão e com pouca capacidade de sobrevivência o garoto é largado para trás enquanto sua tribo avança.
Cheio de dúvidas e articulando uma linguagem primitiva, sem muitos substantivos, nem verbos ou tempos para conjugá-los, a história ganha ainda mais contornos de “superstição primitiva” e de um medo primordial das criaturas que vagam pela passagem durante a noite, ainda mais por conta de que o protagonista é tão somente uma criança. Um terror do desconhecido paira sobre o pequeno e primitivo garoto o tempo todo.
Já nessa primeira história, mesmo na dificuldade inicial da leitura truncada de uma linguagem primitiva, temos um conto sobrenatural e arcano, os dois fatores que nortearão daqui até o fim do livro todas as outras histórias que dão voz ao fogo.
Daí em diante o que Moore faz é construir a partir de uma base sobrenatural e ao mesmo tempo histórica, as fundações de uma narrativa fluída que vai de encontro ao gosto do leitor contemporâneo: investigação, sobrenatural, fatos históricos estranhos, descrições detalhadas das paisagens, estados mentais conturbados, situações complexas que não se desenrolam de imediato em um único conto, arquétipos que transcendem o tempo, erotismo de ótima qualidade, criaturas sobrenaturais, personagens complexos que estão em vários matizes psicológicos dentro da história… aqui não há bem ou mal, apenas o humano e o sobrenatural.
Dentre os muitos personagens e arquétipos explorados na narrativa de Moore, é complicado dizer se este ou aquele são melhores, mais interessantes ou mais aprofundados.
Seria leviano dizer algo nesse sentido, no entanto é normal a simpatia por um ou outro. Com um leque soberbo de ideias e conceitos, os personagens da obra são tão ímpares quanto os contextos de suas respectivas histórias dentro da macronarrativa do livro.
Um verdadeiro desfile de ótimas ideias como, por exemplo, um bruxo que tem tatuado em seu corpo o mapa de sua aldeia, marcas estas que ligam a vida do bruxo com a vida da própria aldeia que, você já deve ter entendido, é Northampton em uma versão ainda primitiva.
Um cabeça falante, um cavaleiro templário que quer construir uma catedral circular para que o demônio não possa se ocultar em seus cantos, um outro templo construído de forma triangular para homenagear a santa trindade, um caçador nas inundações que imagina ser um pássaro gigante (ou um pássaro gigante que imagina ser um homem?), duas moças cuja amizade recorre aos encantamentos sombrios que lhes foram dados por um estranho bruxo com chifres de galhos e a face negra como a noite, um vendedor de cintas-liga poligâmico, um juiz viciado em sexo às voltas com a linguagem dos anjos e uma viúva e sua filha, o próprio Alan Moore percorrendo becos e vielas da cidade… entre outros seres e criaturas desfilando por um mundo onírico, meio pesadelo, meio conto de fadas e outro tanto de folclore e mitologia local…
Aproximadamente cinco anos foram necessários para a elaboração de A voz do Fogo, acredito eu um tempo relativamente curto levando-se em conta a quantidade de boas ideias ao longo do texto, que, diga-se de passagem, é muito bem construído em todas as obras.
Você percebe nas descrições detalhadas de ambientes naturais e urbanas, nos traços psicológicos dos muitos personagens do livro, na maneira como os contos são conduzidos até seu desfecho, o estilo da fala… tudo no livro tem um esmero e um cuidado para com a estrutura narrativa de modo a refletir o empenho do autor em percorrer não só o mapa histórico e cultural de Northampton, mas acima disso de percorrer também o mapa da própria forma de se fazer Literatura.
A Voz do Fogo | Um livro que vale a pena
Lançado pela primeira vez no Brasil pela Editora Conrad por volta de 2001/2002, o livro ganhou uma nova edição pela Editora Veneta em 2012.
Também é da Veneta a ótima edição encadernada do clássico Do Inferno (veja nossa chamada para o lançamento do encadernado AQUI), outra obra potente em que Moore alterna fatos históricos com sua criatividade frenética.
A edição que tenho é a da Conrad, infelizmente não sei dizer aqui quais as substancias diferenças no texto quando comparado com a edição da Veneta, mas acredito que devam ser bem poucos e se há algo de diferente com certeza se deve às escolhas do tradutor (caso tenha sido outro).
Aqui e ali vi alguns erros de revisão na edição da Conrad, coisas como espaço entre palavras “comido” e umas palavras com claro erro de digitação, mas nada comprometedor, torço para que a edição da Veneta não tenha sofrido algo nesse rumo, na ocasião oportuna espero poder fazer um comparativo entre ambas, tanto no que se refere ao texto quanto no que se refere ao acabamento, pois a edição da Conrad era em papel Offset, brochura e laminação fosca na capa.
O saldo da leitura de A Voz do Fogo é mais do que positivo, dificilmente o leitor se arrependerá da aquisição de uma obra cujo conteúdo trás página a página situações fascinantes e de um poder imersivo enorme, tanto nos personagens quanto nas variações físicas que ocorrem na cidade Northampton, tudo na obra é um convite ao mergulho por seus becos, vielas e ruas.
Primeiro romance do mestre dos quadrinhos Alan Moore, “A Voz Fogo” reúne histórias cheias de luxúria, loucura e êxtase. O cenário é Northampton, cidade natal do autor, na Inglaterra, onde vivem os personagens do livro: jovens bruxas, velhos guerreiros, poetas loucos e cabeças falantes.
Cada história se passa em um diferente período histórico, ao longo de 6 mil anos, mas todas se conectam e, juntas, compõe um retrato mágico e sombrio da cidade.
Moore mistura cabala, experimentalismo e fantasia pop num romance instigante, às vezes trágico, e sempre hipnotizante.
O livro arrancou elogios entusiásticos na imprensa mundial e foi comparado com a obra do argentino Jorge Luis Borges. Agora, chega ao Brasil com prefácio de outro inglês célebre: Neil Gaiman
“Um romance extraordinário, selvagem e, às vezes, insuportavelmente belo…”
Time Out
“Incandescente, cheio de encantos naturais e sabedoria”
Village Voice
“Alan Moore é um ícone. O nome mais importante dos quadrinhos nos últimos 30 anos. É Pelé com bola. Picasso com pincel, Ferrari de tanque cheio.”
Revista Trip, 2006
“Seu trabalho é inimitável, inclassificável: uma rica mistura de fantasia, folclore, misticismo, humor e crítica social”
The Guardian, 2009
A Voz do Fogo | Ficha Técnica
- AUTOR: Alan Moore
- CATEGORIA: Romance / Contos
- EDIÇÃO: 2ª
- Nº DE PÁGINAS: 336
- FORMATO: 21 X 14 x 1,3 cm / Brochura
- ISBN: 978-85-63137-01-2
Editora Veneta
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.