Há duas coisas que sempre encontraremos espalhadas pelo mundo: a inocência das crianças e guerras sem sentido… Do encontro dessas duas forças humanas pouco ou nada de bom é obtido como resultado. Fatalmente nada de inocente sobra além de escombros, vidas esmagadas, brinquedos perdidos, famílias destroçadas e mentes em frangalhos pelos horrores vistos e vividos…
[dropcap size=small]A[/dropcap]lguém pode alegar que há guerras com motivos reais e objetivos concretos, particularmente acho que não há nenhuma, nunca houve, nunca haverá algo que justifique um conflito armado, invasões de cidades, vilas, países inteiros, matança desenfreada, violência gratuita, estupro social coletivo. É tudo jogo político, interesse, riqueza, poder, opressão, disputas territoriais, tribalismo moderno, a renovação de nosso passado tribal com balas… qualquer desculpa para apontar um arsenal de balas, mísseis, paus, pedras e flechas em direção ao seu vizinho. Belicosos, nossos assentamentos são todos belicosos. Onde há guerra não há espaço para inocência. É disso que fala Beasts of No Nation (BoNN), primeiro longa-metragem de produção exclusiva do serviço de vídeo por demanda Netflix.
A mira é certeira, perdoem o trocadilho ruim… mas a produção de BoNN vai direto ao cerne da questão dos muitos conflitos armados nos diversos países do gigantesco continente africano que, além de sua multidão de tribos diferentes, é paupérrimo, assolado por quase todo tipo de doença, mortalidade infantil, regimes ditatorias em constantes conflitos, intervenções estrangeiras falidas e historicamente pautadas pelos antigos aspectos colonialistas que ainda perduram em diversos países conceitualmente ditos “periféricos”.
Partindo de um ponto de vista essencialmente humano, BoNN aponta sob a excelente direção de Cary Joji Fukunaga, aclamado pela estupenda direção da primeira temporada de True Detective (não conhece? veja AQUI), um dedo em riste para a ferida que tem sido, ao longo de séculos, os conflitos armados e extremamente violentos entre povos e facções rivais pelo domínio territorial de pequenos países cuja única semelhança real é a fisionomia cansada de seus habitantes, cujas culturas são tão diferentes entre si quanto a cultura de um carioca é diferente da cultura de um cearense.
Beasts of No Nation | Do macro ao micro e vice-versa
Expanda a visão, amplie o foco, pegue um tema universal, trace suas principais características, identifique o que há de recorrente no tema, compare com outros, percebe o que há de dispersivo do tema em outros pontos e momentos, perceba seus agentes atuando e transformando a história, depois reduza-o para um lugar específico, escolha os agentes e veja o mesmo tema pela ótica desses agentes em campo, defina bem seu ponto de vista e o local de onde falam seus atores socioculturais. Nisso encontramos o pedaço de universal que existe dentro do individual, do especificamente situado. Recorte o todo e olhe atentamente para esse pequeno pedaço, quase nada ou muito pouco se altera do macro para o micro. É essa a ideia por trás de BoNN: falar de todas as guerras, de todos os locais através de um pedacinho de mundo, de uma ilha aparentemente isolada que é o olhar de uma criança.
Esse “todo” são as guerras em qualquer lugar atingindo qualquer pessoa, o recorte é a guerra que engoliu a vida de Agu (o magnífico estreante Abraham Attah) em algum país propositalmente não nomeado no continente africano. Esse local, essa vila, esse povoado não precisa de nome, nem de uma identidade específica para cumprir seu papel nessa narrativa, pois é um símbolo de todo e qualquer lugar, de todo e qualquer povo. Agu poderia ser israelense, iraquiano, turco, indiano, um garoto sob domínio tráfico de drogas nas favelas das muitas cidades brasileiras. Agu é um universo infinito de crianças inocentes que são transformadas em “soldados” de guerras genéricas, sem valor, sem propósito… um número qualquer em estatísticas de programas sociais e ONGs por aí.
Essa coisa? É só um garoto…
Na polaridade Guerra x Inocência BoNN ergue para sua narrativa dois pilares: Agu, a criança que acompanhamos de um lado e que é a síntese da inocência, do elo fraco; no outro extremo seu perfeito oposto, o homem simplesmente chamado de Comandante (Idris Elba). Enquanto Agu foge, corre e sobrevive ao massacre que vitimou sua família e tenta ir na direção oposta à matança, o Comandante marcha no sentido contrário, indo de encontro ao massacre num desejo doentio de combater um inimigo genérico, mas que está lá fora em algum lugar.
Em sua marcha, o Comandante vai arregimentando “soldados” anônimos e igualmente genéricos, sem rosto, sem nome, sem documento, homens perdidos, guerreiros sem suas tribos, maridos sem suas esposas, filhos sem seus pais e pais sem suas crianças… um exército de perdidos marchando enquanto proferem suas palavras de ordem: Victory, Victory. Qualquer um pode ser soldado em uma guerra sem nome e sem local definido, essa é a metáfora. Enquanto seu Tenente vê apenas um garoto como outro qualquer, o Comandante vê em Agu uma fera com dois olhos para ver, mãos para estrangular, dedos para puxar um gatilho, um ser humano reduzido ao seu instinto mais primitivo: sobreviver… mesmo que para isso seja necessário destruir tudo ao seu redor, inclusive você mesmo. “Um garoto nunca é NADA. Um garoto é uma coisa muito, muito perigosa. Você entende?”. Diz o comandante ao seu tenente.
A dupla de atores (Elba e Attah), não carrega BoNN sobre seus ombros sozinhos, mas não há como disputar espaço em tela com os dois gigantes. Elba não precisa, há tempos, provar sua competência em tela, seu trabalho soberbo fala por si mesmo e acredito que o astro britânico seja um dos melhores atores em atividade atualmente. Filho de pais vindos de diferentes países afro (o pai de Serra Leoa e a mãe de Gana), Elba impõe sua enorme presença em tela com um sotaque carregado, resultado típico da mistura do inglês com os dialetos locais. Seu personagem é frio, centrado e com objetivos claros: preparar seu exército para a tomada da “capital” sob as ordens do Comando Supremo. Para tanto, o dom da palavra é sua mais precisa arma: aponte as palavras certas na direção pretendida e o mundo pode ruir sob seu poder…
Já Attah faz sua grande estreia, e que estreia. O pequeno ator é o exato contraponto a presença de Elba em tela. Enquanto um brilha por sua experiência, porte físico, força e discursos de ordem e poder, Attah parece não interpretar Agu, Attah é Agu. Cada gesto, cada olhar, cada fala do garoto é uma ferida cutucada na longa história do continente africano e no restante do mundo que vira as costas para todas essas guerras anônimas. Rico em expressões, Attah preenche a tela, mesmo ainda muito jovem, com uma atuação impecável dado o teor de seu filme de estreia. Seus sorrisos, seu olhar de medo ou dúvida, suas lágrimas ou entorpecimento carregam em si todos os garotos “enterrados” com seus velhos brinquedos. Não quero desmerecer o restante do elenco (Strika, por exemplo, também é soberbo), mas a polaridade extrema que esses dois astros (um consagrado, o outro estreante) impõe ao longo do filme é coisa para se “reverenciar”. Se Elba é um nome que muitos já seguiam, adicionem à lista agora o jovem Attah.
Beasts of No Nation | Guerra vs Guerras
BoNN é um desses filmes fortes, não um filme DE GUERRA, mas um filme SOBRE GUERRAS, com foco no drama humano, nos resultados dos conflitos, na ação de seus personagens, em suas escolhas, suas perdas e de como essas pessoas precisam sobreviver a isso, não só sobreviver aos ferimentos de tiros e estilhaços de granadas, mas sobreviver psicologicamente e socialmente ao que lhes é imposto. Qual é seu lugar e seu papel nessa história?
O tom intimista do tema de BoNN é perfeitamente representado pela direção detalhada e esteticamente caprichada de Fukunaga que faz um edição com cortes precisos, deixando as cenas mais fluidas, a câmera parada ali a poucos centímetros de distância de quem fala e de quem ouve, sempre nos aproximando daquelas situações que brincam com aspectos do realismo fantástico ao aliar guerra e balas com rituais de proteção espiritual antes dos confrontos.
Apesar de toda a aura densa e opressora da guerra, BoNN tem também aquela aura de atmosfera onírica, misto de pesadelo e sonho durante os pequenos momentos que antecedem o despertar; apesar de todo horror de uma guerra (e ele está lá), BoNN tem beleza. Colaboram em demasia para isso o fato de contemplarmos tudo pelos olhos de uma criança e por sua percepção incompleta de mundo sem todos os medos e preconceitos desenvolvidos pelo senso de moralidade de um adulto. Agu é aquele pedaço de consciência que vaga ainda entre a brincadeira infantil e a alucinação do entorpecimento que nasce com a brutalidade. O farol dos olhos do garoto acabam por distorcer ainda mais a percepção dos momentos que o cercam. Sem a maturidade necessária para distinguir o que ocorre ou sem amparo da família, mergulhar no caos é o único caminho possível.
Com essa atmosfera intimista, com seu tom de drama universal, uma direção impecável, elenco inspirado e, com exceção de Elba, nenhum outro “grande astro” da indústria emprestando seu tom de “panfletagem” para legitimar o tema, o resultado que temos em tela, mesmo dramático, soa perfeitamente natural, espontâneo, coeso em si mesmo. Nada ali é piegas, gratuito ou forçado, pelo contrário, Fukunaga é até cru demais nesse sentido, com a exceção de seus lirismo em ocasiões necessárias como no caso dos rituais místicos, todo o restante de BoNN é frio, cruel e direto. O fato de não ser uma produção “enlatada” ou um filme cujo ponto de vista é o do “colonizador” trouxe a BoNN um aspecto diferente, algo digamos assim, mais forte ao dar a Agu o “comando” da câmera… e que câmera.
Não há como não mergulhar no trajeto que o menino traça pelo interior de um trincheira com lama até os joelhos em busca de munição. Se o cinema moderno e suas irritantes câmeras tremeliquentas dos últimos anos ainda não se cansou dessa mania irritante que banalizou um ótimo recurso, Fukunaga mais uma vez vai em outra direção e desfila, literalmente, seu jovem ator por um rio de lama acompanhado por aquele olhar atento e íntimo de quem compartilha as mesmas histórias mesmo não as tendo vivido diretamente.
Eu salvei sua vida, eu salvei sua vida, eu salvei sua vida. Vai!
Acredito que a aposta do Netflix em estrear no segmento de longas-metragens tenha tido saldo mais que positivo. O produto tem excelente produção, os aspectos estéticos são impecáveis, sobretudo as locações e caracterizações, o elenco de forma geral dispensa mais floreios (ainda preciso falar mais sobre Elba e Attah?), a trilha sonora desde o primeiro teaser já mostrava uma sonoridade densa, pesada que mantinha o mesmo tom de intimidade da narrativa do filme, principalemente a belíssima By de Kiss do grupo M83 (a música dos trailers do filme) que já marcou as falas de Idris Elba e o semblante de Abraham Attah como um símbolos do filme.
Se Fukunaga, a despeito de seu elogiadíssimo trabalho em True Detective, ainda não havia ganhado seu posto definitivo no hall dos nomes a se seguir com radar, GPS e satélite, BoNN vem somar pontos mais do que extras em sua carteirinha. Agora é esperar as reações das premiações do segmento, bem como as do mercado de forma geral, já que o Netflix vem deixando em situações complicadas diversos segmentos da produção audiovisual… não são poucos os mega-serviços que vem “virando a cara” para a maneira com que o serviço de vídeo por demanda vem impondo pesadas mudanças ao mercado de consumo e agora também, pelo visto, ao mercado de produção de conteúdo, frente que o Netflix já ataca com munição pesada com seus seriados exclusivos.
De resto é esperar também onde e quando vamos ter a oportunidade de ver Abraham Attah brilhando em tela, sobretudo se for sob ótima direção.
Feras de Lugar Nenhum, o livro
Beast of No Nation é uma adaptação da novela homônima que recebeu em nosso país o título de Feras de Lugar Nenhum. Escrito por Uzodinma Iweala, na época com 23 anos, e lançado nos EUA e Inglaterra em 2005, o livro ganhou dois prêmios na ocasião de seu lançamento: Young Lions Fiction, da Biblioteca Pública de Nova York, e o Discover Great New Writers, na categoria ficção.
Lançado no Brasil pela Nova Fronteira em 2006, a obra se encontra fora de catálogo, o que, em breve, deve ser remediado com a chegada do filme que adapta, um fluxo muito comum nos últimos anos em relação a bons livros que tiveram pouco destaque antes de serem a base para adaptações. Aqui da redação aguardamos ansiosos o relançamento da obra na já batida versão “capa do filme”.
Beasts of No Nation | Ficha técnica
- AUTOR:Uzodinma Iweala
- EDITORA: Nova Fronteira
- I.S.B.N. 8520919081
- IDIOMA: Português
- ANO DA EDIÇÃO: 2006
- 192 Páginas
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Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.