O sonhar, um dos campos mais férteis da experiência humana que exerce um fascínio independete da abordagem, seja ela cientifica, religiosa ou pelos “olhos” de variadas culturas; um tema que pode ter inúmeras interpretações e funções que ainda hoje permanecem envoltas em uma intrincada teia de mistérios.
Na mitologia grega temos Morfeu, o deus alado dos sonhos, filho de Hipnos (o Sono) e de Nix, a deusa da Noite. A denominação da substância morfina deriva de seu nome. No livro de Gênesis temos os relatos sobre José do Egito e a decifração dos sonhos no contexto bíblico.
Sigmund Freud pressupõe em sua obra a Teoria dos Sonhos que:
“O homem precisa dormir para descansar o corpo e, principalmente, para sonhar: “o sonho é a realização dos desejos reprimidos quando o homem está consciente”. Quando o homem dorme, a consciência “desliga-se” parcialmente para que o inconsciente entre em atividade, produzindo o sonho: através do id, os desejos reprimidos são realizados”.
Segundo Freud, os traumas que resultam em certos comportamentos tidos como anormais estão ocultos no inconsciente das pessoas, onde estão encerrados os desejos reprimidos.
Se o sonhar é um campo sem precedentes para a curiosidade humana nos mais variados campos, é obvio que ele se torne um prato cheio para escritores, roteiristas e qualquer mente febril que resolva perscrutar-lô…
O sonhar como base criativa sem dúvida resultou inúmeras vezes em obras inspiradoras e contundentes nas mais variadas mídias, como Little Nemo de Winsor McCay (New York Herald, 1905), Sandman de Neil Gaiman (The Sandman, 1989), A Hora Do Pesadelo de Wes Craven (Nightmare on Elm Street, 1984), PAPRIKA de Yasutaka Tsutsui (livro de ficção, 1993) que inspirou um animê homônimo com direção de Satoshi Kon (2006), Preso na Escuridão ou Abra os Olhos (Abre los Ojos, 1997) de Alejandro Amenábar, A Origem de Christopher Nolan (Inception, 2010), e tantas outras obras que bebem na fonte inesgotável do mundo dos sonhos…
Ilhado e formação de público
Quantas HQs você compra por mês? Quantas vezes vai ao cinema? Gosta de games? Séries de TV? Action Figures? Livros? Geralmente quem curte cultura pop abraça mais de uma dessas áreas. Mas se você não for o Bruce Wayne ou Tony Stark, tá meio difícil manter todas estas predileções em dia sem fazer uma ginástica para esticar seu suado dinheirinho e mesmo assim tendo que cortar muitas vezes coisas no processo, ainda mais com o país nesta crise. É, ela afeta os seus quadrinhos, caro leitor, afinal, geralmente os papéis utilizados para imprimi-las são importados e, com a alta do dólar, isso vai refletir no preço final de suas amadas edições.
Ilhado: Sonho Antigo é resultado de um projeto que busca a produção de uma revista com recursos próprios e com material mais barato para a publicação da mesma, cuidados e escolhas que vão incidir no preço final da edição, tornando o produto um pouco mais acessível do que habitualmente vemos. Isso de cara já é a sua maior virtude, já que se preocupa com formação de público leitor, fomentação de um meio baseado em publicações mais acessíveis ao bolso do consumidor. O melhor de tudo é que o autor deixa claro isso na apresentação da revista.
Edições luxuosas viraram um foco das editoras que detém os direitos de publicação de obras principalmente da Marvel, DC, Image e Dynamite no Brasil, mas aqui cabe ressaltar que quando uma editora peso pesado investe no lançamento de uma obra nestes formatos, geralmente são produtos consagrados, a possibilidade de ter êxito nas vendas é bem maior do que se ter um título desconhecido nestes moldes; contudo, se pensarmos em produtos nacionais independentes e que buscam encontrar o seu leitor, talvez a receptividade seja ainda menos calorosa.
Quadrinhos nasceram como uma mídia barata e que tinham nas bancas de revista seu maior foco, nos EUA já não estão nas mesmas faz tempo, no Brasil as bancas não são mais o melhor ponto para encontra-las, a péssima distribuição, monopólio e o novo mercado que parece apenas buscar as estantes dos colecionadores com a efervescente politica do “material de luxo”, tornam estes espaços cada vez mais ultrapassados. Dificilmente encontraremos versões mais baratas de algumas obras, não tenho nada contra colecionismo, porém esta visão restritiva que o mercado assumiu parece não prever novos leitores ou leitores casuais e o pior, acredita que todos estão nadando em dinheiro.
As plataformas de financiamento, que se tornaram a resposta para a produção atual do “mercado nacional”, estão cheias de projetos de HQs sem a menor ideia de qual o perfil real do leitor brasileiro, apostando muitas vezes no acabamento gráfico em detrimento de uma produção mais barata e com grandes tiragens que busque um maior número de leitores, muitos autores nacionais estão aderindo cada vez mais às edições luxuosas e abraçando este formato restritivo como padrão para seus lançamentos. O trabalho de conquista e expansão foi centrado em uma produção de baixa tiragem, mas que goza de um acabamento primoroso.
Alguns autores fazem uma mescla, lançando tanto no formato impresso como na web, mesmo que algumas edições digitais ainda tenham preços altos para produtos que não tem toda a logística do material impresso, contudo temos duas novas apostas o Social Comics e o COSMIC plataformas brasileiras de streaming de quadrinhos que prometem revolucionar o mercado nacional no que tange HQs digitais.
No mercado físico o leitor iniciante ou eventual, aquele que se desfaz do produto após ter lido, e até mesmo uma parte dos que costumam colecionar dificilmente vai desembolsar uma quantia alta em algo que conhece, o que dizer então de um produto que não conhece…
O argumento recorrente quando se fala nisso é que a compra de um encadernado sai mais em conta em relação em investir em revistas seriadas, e se tratando de material nacional o formato luxuoso serve também para competir com o material importado publicado pelas grandes editoras.
A princípio estes argumentos funcionam se pensarmos em colecionadores, mas não acredito que um indivíduo que não colecione gastaria valores que beiram e em alguns casos ultrapassam R$100,00 (Cem Reais) em um produto apenas para conhecê-lo, essa média de valores elevados esta tanto nos materiais de grandes editoras como na linha independente e autoral que ruma para preços cada vez mais similares.
Ilhado: Sonho Antigo vai na contramão desta tendência, busca o principio básico das HQs, um produto acessível no seu preço de capa (é bom sempre ressaltar que tudo é bancado pelo autor sem uma editora ou plataforma de financiamento coletivo no processo), para uma grande parte do público, aliado a um roteiro eficiente e uma arte comercial, o autor informa que o título também estará no catálogo do Social Comics, Comixology e num formato digital, “pague quanto quiser”.
Criadores e Criaturas
O roteirista Vitor Coelho nos convida a conhecer Daniel, um pai de família envolto em problemas relativos a distúrbios do sono. A saga promete levar o leitor a desvendar os misteriosos, estranhos e recorrentes sonhos de Daniel que parece perdido entre a realidade e o mundo de Morfeu…
A revista tem como ponto forte a abordagem dos mistérios do sonhar, segundo Vitor motivado por experiências próprias com sonhos recorrentes, ele nos apresenta um roteiro que oferece diálogos enxutos que cumprem o papel sem comprometer a leitura, isso aliado a uma arte competente que conduz com eficiência o leitor com o passar das páginas.
Porém a obra tem que lidar com um problema típico das primeiras edições, como apresentar resumidamente uma temática, no caso de Ilhado, densa, sem que se torne superficial e ainda consiga ser convidativo o suficiente para fisgar o leitor a continuar a jornada?
Vitor Coelho e Marcelo Salaza conseguem esta façanha com algumas ressalvas…
A HQ Ilhado: Sonho Antigo atiçou a curiosidade, mas esta presa demais para uma proposta tão rica que é o sonhar, talvez algum tipo de medo de ousar ou de esbarrar ali, logo na esquina, com o Morpheus de Gaiman ou Freddy Kruger de Craven, já explico isso…
Já que a experiência de Daniel com o sonhar parece implicar em aprendizado e crescimento dentro destas experiências recorrentes, Vitor apresenta alguns fatos esporádicos que demonstram o crescimento do protagonista neste ambiente, mas nada tão perturbador, contundente ou claustrofóbico, algumas coisas ficaram gratuitas demais, a ilha como elemento ou personagem parece não ter uma ressonância maior com o plano real.
O roteiro opta por uma explicação um tanto didática da evolução de Daniel nos sonhos, usando o artifício de uma sessão de análise, mesmo este recurso sendo oportuno faltam elementos que deem um ritmo e identidade a narrativa uma passagem mais angustiante e perturbadora, o que geralmente caracterizam obras que brincam com o sonhar, aquele momento onde o leitor também se perde, a subversão da tênue linha do real e do onírico, porém tudo é colocado de uma forma sublimada pelo autor…
Outro ponto que ficou obscuro é que isto não parece impactar tanto no mundo real, Daniel apresenta um distanciamento, mostra-se introspectivo e desatento, foge de conversas mais prolongadas, mas para quem foi “assombrado” por sonhos a vida toda não percebemos transgressões maiores, já que ele parece ter evoluído nas duas realidades.
Coisas como alteração de realidade, problemas de percepção, alguma manifestação física como ferimentos que ocorreram nos sonhos ou objetos pertencentes às duas realidades quebrando esta barreira, um antagonista no sonhar, e outros clichês que se bem usados podem elevar a tensão e pontuar de forma mais pungente este conflito ou amalgama de realidades, estes elementos não foram bem orquestrados nesta estreia…
Ilhado: Sonho Antigo abre mão neste primeiro momento daquele pequeno gatilho que coloca em dúvida a percepção de realidade do protagonista e do leitor, o jogo labiríntico do sonhar aquela sensação crepuscular de estar preso infinitamente entre realidades, como se alguém estivesse arranhando o seu cérebro, algo primordial neste tipo de obra!
Faltou a esta primeira edição de Ilhado: Sonho Antigo a inconfundível sensação de apropriação e ritmo, uma assinatura mais decifrável, uma definição de rumo mesmo, é um suspense? Terror? Ficção cientifica? Algo que para qualquer produto, em qualquer mídia representa um momento único e delicado, ele pode definir o sucesso ou o fracasso do produto, pois muitos não vão ter uma segunda chance.
Além do papel
No que se refere à arte, ao encargo de Marcelo Salaza, já que a escolha em lançar a revista em preto e branco foi uma das diretrizes do projeto, nada melhor que contar com um artista que trabalhe com alto contraste, escola muito bem representada pelo grande artista Mike Deodato aqui no Brasil.
Marcelo Salaza é um artista experiente e versátil dono de estilos variados, com trabalhos publicados por várias editoras dos EUA como Viper Press, Big Dog Ink, Zenescope, Markosia, Bluewater, Ronin Studios.
Na produção de Ilhado: Sonho Antigo, Salaza utiliza recursos muito comuns na produção de quadrinhos atualmente, artistas como Michael Lark, Leinil Farncis Yu, Mike Deodato, Jerome Opeña, Alex Maleev e outros tantos se utilizam de fotos e programas como o Mangá Studio, Sketchup, Poser Pro e outros, para obter referências e para auxilio de construção de cenários, objetos, figura humana e no próprio processo de desenhar, literalmente.
O uso da mesa gráfica para desenho Cintiq se popularizou entre os artistas, muitos já não produzem originais físicos, sendo uma produção totalmente digital, isso se reflete como uma evolução do mercado de HQs, no que tange o mercado norte-americano, que impõem um ritmo frenético de produção, vem bem a calhar, os artistas acabam ganhando mais agilidade e um volume de produção altíssimo com a utilização destes inúmeros recursos e programas de auxílio, esses avanços todos também possibilitam uma produção que não fica mais dependente de materiais artísticos físicos que muitas vezes saem caro e são difíceis de encontrar…
Apesar de ainda dividir opiniões, é um caminho que dificilmente regredirá, já que os programas chegaram a um nível de sofisticação que não devem em nada aos materiais tradicionais…
No caso de Ilhado: Sonho Antigo, ao analisarmos a obra, percebemos que a arte de Salaza traz um peso positivo à narrativa, principalmente pelo alto contraste utilizado, o que casa muito bem com a temática abordada, mas em algumas cenas carece de retoques no que se refere à construção de algumas poses dos personagens, ficando evidente o uso de modelagem e passando uma sensação pouco natural!
Em um das paginas é utilizado um flashback, geralmente quando este recurso é utilizado em uma revista colorida temos uma diferenciação de cores, e de requadros, em Ilhado, ao utilizar o recurso de flashback, Salaza tentou diferenciar a pagina com a alteração dos requadros, já que não contam com cor, só achei que não ficou bem evidenciado, numa leitura mais rápida pode-se passar batido…
Impressões na areia
Ilhado: Sonho Antigo é uma revista que na somatória vale ser conhecida, Vitor Coelho e Marcelo Salaza entregam um trabalho coerente.
Enquanto obra o futuro da mesma repousa na disposição e nas mentes febris dos autores e de até onde eles querem ir e também nos levar a adentrar nas pradarias do sonhar, quebrando os grilhões soltando as amarras e sonhando…
Enquanto produto também vale ressaltar que o êxito depende de divulgação e apoio a obra, ao propaga-la pela rede para que encontre o seu devido público, isso meu amigo é tarefa sua, leitor, fã de quadrinhos, e de todos que querem ver o fortalecimento do mercado nacional de HQs…
Ilhado: Sonho Antigo
“Daniel não se entende e não se encontra, talvez por que ele viva em dois mundos e esteja procurando a coisa certa no mundo errado.”
- Roteiro: Vitor Coelho.
- Arte: Marcelo Salaza.
- Capa: por Marcio Fiorito e Fabrício Guerra.
- Formato: Americano
- Número de Paginas: 24
- Capa: Couché 115gr
- Miolo: Couché 90gr
- Preço: R$9,90
- Frete: Grátis
Você pode adquirir Ilhado: Sonho Antigo através dos seguintes canais de comunicação:
Sobre o Autor
É Bacharel em Psicologia, porém optou por sua grande paixão trabalhando como ilustrador e quadrinhista. É sócio do Pencil Blue Studio e Ponto Zero, podendo assim viver e falar do que gosta: quadrinhos, cinema, séries de TV e literatura.