Não é de agora que o segmento de séries dramáticas vem impondo um ritmo pesado em termos de qualidade tanto na parte técnico-produtiva quanto em elenco e textos.
Breaking Bad, True Detective, House of Cards, Sopranos entre tantas outras nivelam por cima seu público alvo através de seus argumentos densos, temas pesados, diálogos incisivos e abordagens até polêmicas de alguns assuntos caros ao ambiente sociocultural a que se reportam.
Ponha aí nesse cardápio com todos esses temperos Luther, minissérie exibida pela BBC e com ninguém menos que Idris Elba no papel do Detective Chef Inspector John Luther que empresta seu nome ao seriado.
Luther | um breve panorama
Depois de três excelentes temporadas, Luther está de volta para por um ponto final em sua trajetória. Seguindo um esquema similar ao de telefilmes, o seriado investe em dois episódios de aproximadamente uma hora e trinta minutos em que, mais uma vez, Luther precisa confrontar uma investigação macabra envolvendo crimes igualmente macabros onde entrar na mente do assassino e “devorar” seu modus operandi é apenas o primeiro passo em direção às respostas e, consequentemente, apreensão do culpado.
Ao longo dessas três temporadas tivemos a oportunidade de acompanhar Elba, ouso dizer, em um de seus melhore papéis sem dúvida. O formato de minissérie permitiu ao ator e seu igualmente brilhante elenco de apoio se desenvolverem de forma profunda e intimista, através de atuações sempre inspiradas, guiadas por excelentes direções de elenco que extraiam o melhor de cada ator, algo possível justamente pelo tempo mais longo que o formato televisivo apresentou de modo geral e claro, na duração de cada episódio, cerca de 55 minutos para cada um, dando tempo para desenrolar a trama da semana, evoluir e aprofundar personagens e suas motivações no contexto geral.
Sempre intercalando os dramas pessoais dos personagens com suas investigações, Luther acima de tudo não era apenas um seriado investigativo com casos bizarros a cada semana, acima de tudo o programa era uma pequena incursão para o interior do abismo social dos psicopatas, serial killers e maníacos homicidas que saiam de seus esconderijos para atormentar os habitantes de Londres de um lado, enquanto do outro lado a séries mostrava a genialidade do personagem John Luther em lidar com esses tipos diversos de assassinos e crimes com dedicação ferrenha, sem se permitir o erro, o medo ou a falha na execução de seu trabalho, enquanto, como pagamento reverso, sua vida pessoal desmoronava com o fim de seu casamento com Zoe Luther (Indira Varma).
Se Elba era o centro das atenções como um personagem forte, centrado em seu trabalho, mas por vezes extremamente emotivo e dado a rompantes violentos, seus amigos e personagens coadjuvantes traziam ótimos centros de equilíbrio ao personagem e sua vida, bem como integravam em muitas situações os próprios núcleos das tramas. Ian Reed (Steven Mackintosh), Justin Ripley (Warren Brown), Martin Schenk (Dermot Crowley), Erin Gray (Nikki Amuka-Bird), Rose Teller (Saskia Reeves) entre outros tantos personagens entraram e saíram das três temporadas da série enriquecendo o material, sobretudo os insanos criminosos que desafiavam a força policial londrina, uma mais intrigante e bizarro que o outro.
Abro aqui um parágrafo especial para a personagem Alice Morgan (Ruth Wilson) que se tornou o grade destaque ao lado de Elba roubando a cena em vários episódios em que ambos contracenaram juntos ou separadamente. A princípio, uma das assassinas que Luther deveria prender, Alice é uma personagem inteligentíssima, porém sem nenhum senso de empatia por outras pessoas.
Durante a investigação do assassinato dos pais de Alice, a moça acabou por se tornar um tipo de confidente do detetive Luther que, com sua genialidade, acabou por impressioná-la a ponto de também desenvolverem uma estranha amizade e quase um tipo doentio de “romance” ao longo de vários episódios, inclusive com o Luther recorrendo ao intelecto da moça para compreender os assassinos que deveria prender.
A relação da dupla ao longo do seriado ganha contornos cada vez mais complexos e gera, além de tudo, momentos divertidíssimos frutos da ótima atuação de Wilson que nos entrega uma Alice cínica, dúbia, linda e extremamente forte em suas ações e escolhas, inclusive para defender Luther de forma ferina em ocasiões de perigo, o que acabou gerando, além da amizade, da química todo no ar entre os personagens, uma cumplicidade sem medida entre ambos.
Além de tudo isso a tensão sexual sempre presente entre os dois personagens aflorava pelos “poros” da tela para os espectadores constantemente, só reforçando o excelente trabalho da direção em extrair o melhor do melhor de seu elenco…
Vale também citar que não só Alice, mas outras tantas atrizes interpretam personagens igualmente fortes e inteligentes como a própria Zoe Luther cuja separação do marido mergulhado na escuridão de seu trabalho acaba por afastar seu grande amor, um dos muitos motivos da derrocada de Luther em direção ao abismo.
Até mesmo quando uma dessas mulheres não é um amor ou uma aliada, a série nos entrega uma antagonista sensível, amedrontada pela enorme sombra projetada por John Luther sobre aqueles que o seguem, como é o caso da detetive Erin Gray (Nikki Amuka-Bird) que não vê com bons olhos os métodos pouco ortodoxos de Luther para lidar com criminosos igualmente nada ortodoxos.
É em Erin que encontramos o oposto de Alice em duas das três temporadas do seriado: uma é força, determinação sem limites e admiração obsessiva, a outra é contenção, é determinação guiada por seus princípios éticos que vão de encontro aos do detetive a quem deve obediência profissional, é receio de excessos no cumprimento de seus deveres e dos deveres dos que estão ao seu redor.
Luther | Os criminosos e seus abismos sociais
Luther tem todo aquele charme de material inglês: o sotaque britânico, os casacos e sobretudos impermeáveis para proteger do frio e da quase onipresente chuvinha londrina, os modelos de carros clássicos, as ruelas obscuras e acima de tudo, os tipos estranhos e exóticos que por elas passam desde Jack, o estripador.
Não à toa a impressão que temos durante cada temporada é de que a produção queria reinventar o mítico assassino considerado por muitos como o primeiro serial killer da história.
A missão é cumprida a contento a cada episódio onde podemos ver assassinos de policiais, assassinos ritualísticos, narcisistas compulsivos usando máscaras de folclore, maníacos obsessivos por pés e pelo rosto de sua primeira vítima, jogadores compulsivos de RPG que extrapolam os limites do jogo para “dentro” da realidade impondo-se a si mesmos regras e pontuações para cada tipo de crime cometido, estu e por vezes, até mesmo a própria corrupção dentro das fileiras da policia vem à tona para sufocar Luther e seus amigos no dever de cumprir a lei, quando não isso, as pequenas maquinações da criminalidade local como prostituição, pornografia e chantagem.
Diante de tantos desafios e de criminosos inteligentes, inventivos e mortais, Luther acaba caminhando ao lado desses seres perigosos para entender suas ferramentas e linhas de raciocínio, por vezes o próprio Luther chega na beirada do abismo, dá uma leve inclinada em direção a borda, olha lá no fundo da escuridão, manipula as leis que tanto preza e protege para retomar sua posição inicial e desferir uma cartada decisiva sobre os matadores que desafiam a policia londrina a cada novo caso.
Outro fator interessante sobre os casos da série diz respeito ao impacto que cada um tem sobre os personagens do seriado, alguns saindo ilesos, outros sendo vitimados, outros tendo oportunidade de desenvolvimento, mas de modo geral todos são tocados pela transformação de ter lidar com o pior da humanidade e conseguir proteger inocentes e sair disso tudo ainda com sua sanidade minimamente preservada no processo.
Luther | Um drama humano
Acima de qualquer proposta sobre ser uma série investigativa com casos complexos e assassinos terrivelmente engenhosos e perigosos, Luther é um drama pessoal, uma luta constante para dar o melhor de si em prol dos outros. O personagem de Elba, apesar de inteligentíssimo em várias ocasiões falha miseravelmente em impedir certas perdas e danos colaterais, tanto para si quanto para aqueles que ama e tal recurso de roteiro empresta a cada episódio grandes cargas de empatia até mesmo em relação aos personagens que são, por vezes, inimigos ocasionais do detetive Luther como é o caso de Erin Gray e George Stark, cuja investigação pretende exonerar Luther de suas funções na policia devido aos métodos pouco convencionais utilizados em muitos de seus casos.
Autodestrutivo, Luther é um daqueles personagens que fascina o espectador por suas ações intempestivas, sua inteligência, imprudência ao não utilizar armas de fogo, uma nobreza em arriscar a si mesmo que beiro o estúpido e, acima de tudo, por manipular a quase totalidade das ações de tudo e todos ao seu redor em nome de um bem maior… justamente indo nessa abordagem, é que os episódios especiais de dezembro próximo irão construir o retorno do personagem para, ao que tudo indica, um último trabalho investigativo para a policia de Londres ao lado de uma nova forã tarefa sob o comando de Schenk.
Pelas sinopses e textos de divulgação lançados até o momento, Luther precisa retornar da aposentadoria e deixar de lado suas perdas para auxiliar a investigação e captura de um serial killer que devora parte de suas vítimas e estabelece uma estranha e distorcida conexão entre as mortas e seus próximos alvos, pontuando mais uma vez a corrida contra o tempo como um dos principais desafios da investigação e um dos focos da trama.
A “quarta temporada” de Luther estreia dia 15 de dezembro na BBC One e no dia 17 de dezembro os episódios estreiam na BBC America como um grande longa-metragem dividido em duas partes a serem exibidas consecutivamente. Luther é escrito por Neil Cross e tem na direção Sam Miller, Brian Kirk, Stefan Schwartz e Farren Blackburn. O especial de fim de ano tem texto de Cross e direção de Miller, repetindo a parceria da primeira temporada do seriado.
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Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.