O mega-empresário Palmer Eldrithc viajou ao sistema Proxima, foi uma longa viagem e seu retorno foi tumultuado… Leo Bulero, também um mega-empresário, foi o primeiro a se alarmar com o retorno de Palmer, sua empresa, a Ambientes P.I, seria a primeira a sofrer com o retorno do respeitado rival.
Seus consultores de Pré-Moda já estão em alerta, os precogs (de precognitivos) Barney Meyerson e sua nova namorada Roni Fugate, seres humanos dotados do dom de prever possíveis futuros, viram duas situações envolvendo futuros em que Bulero assassina Palmer e um futuro em que Meyerson, ao tentar salvar Bulero de Palmer, acaba morto…
Dois homens extremamente poderosos em rota de colisão, duas drogas capazes de “traduzir” os seres humanos para outras realidades disputando mercado, colônias de terra-formação em Marte, uma conspiração para dominar a tudo e todos, decisões tomadas no calor do momento e a percepção do real posta à prova… Philip K. Dick entregou mais uma vez ao seu leitor uma narrativa rápida, instigante e cheia de dúvidas que atormentam seus personagens e a nós, seus fãs.
Philip K. Dick, o homem que duvidou de toda Realidade
Philip K. Dick (PKD), um dos mais respeitados e renomados escritores de Sci-fi do século XX, possui em sua cota de grandes livros obras como O Homem do Castelo Alto, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (que inspirou o cultuado filme Blade Runner), Valis, Ubik e muitos outros tesouros cuja a tônica, em sua quase totalidade, é pôr em xeque a percepção do que convencionamos chamar de Realidade. Dick não fez diferente com “Os Três Estigmas de Palmer Eldritch”.
Magistralmente o autor convida seu leitor a mergulhar em uma viagem a um futuro não tão distante, mas de posição imprecisa como todas as suas obras, onde o planeta, super-aquecido e super-populoso, envia de forma quase obrigatória através de uma convocação da ONU, terráqueos para outros planetas do sistema solar, sobretudo Marte, onde se pretende estabelecer uma colônia permanente para a futura migração massiva de humanos quando a vida na Terra atingir níveis proibitivos.
Precursor de alguns dos muitos conceitos do Cyberpunk, PKD criou um mundo, tal qual o de Blade Runner, em sucatas, poluído, à beira do abismo social para nós como espécie segmentada e no limite das temperaturas escaldantes quando o Sol está a pino ao meio dia… A guerra entre empresas, comum em obras cyberpunks, já estava em evidência nas obras de Dick que antecederam Neuromancer, só para pontuar a habilidade de precog do autor.
É comum encontrar nas obras de Dick diversos questionamentos filosóficos e religiosas, bem como a convergência de diversos conceitos religiosas diferentes (gnose, cristianismo, budismo, transcendentalidade, transubstanciação etc) ao lado de conceitos científicos (reais ou fictícios) como ciborguização, realidades paralelas, projeções temporais e previsões de probabilidades de futuros, tudo isso regado ao uso de psicoativos (drogas, medicamentos, alucinógenos etc) capazes de por em dúvida a percepção de seus personagens e, no fim das contas, a percepção do leitor sobre a história ali escrita… PDK questionou a realidade e ela ficou em dúvida sobre si mesma.
De certo modo Os Três Estigmas de Palmer Eldritch parece ser um livro de convergência da quase totalidade dos temas preferidos do autor. Está tudo lá: as drogas alucinógenas, a dúvida sobre o que é real, as muitas visões religiosas e metafísicas sobre tudo, as múltiplas realidades ao nosso redor, os questionamentos de ordem ética e filosófica.
Começando pelo contexto e conceito, depois pela narrativa
Métódico em suas narrativas, PKD começa este livro calmamente apresentando seus personagens, contextualizando o mundo em que vivem e expondo de forma bem natural os muitos conceitos de sua visão de futuro. O leitor mais atento e fã do autor e suas obras com absoluta certeza fica tentado a imaginar (por que não afimar?) que o mundo de Palmer Eldritch é o mesmo do caçador de replicantes Decard. As semelhanças não são poucas e se dão em vários níveis, desde a descrição da tecnologia até os aspectos climáticos… mas é um exercício bem individual essa suposição, fica a critério de vocês.
De partida conhecemos os dois precogs que estarão ao lado do poderoso Leo Bulero: Barney Meyerson e Roni Fugate. Ele um homem mais maduro, experiente, divorciado e com grandes pretensões para a carreira profissional na estrutura da Ambientes P.I, Meyerson foi convocado para ser colono em Marte e não sabe se vai conseguir ser reprovado nos testes; ela é jovem, ainda aprendendo muito sobre o ramo de pré-moda, bonita, inteligente e sagaz, nada econômica em seus julgamentos e opiniões emitidas com ou sem o consentimento de seus ouvintes.
Já na apresentação dos dois personagens, PKD vai despachando uma torrente de ideias, conceitos e situações que irão pontuar sua narrativa de diversos modos; alguns durante todo o trajeto da história, outros apenas aparecendo e desaparecendo para cimentar o contexto do mundo criado por Dick.
A Ambientes P.I e a droga de tradução Can-D, por exemplo, são foco constante de citações por todos os lados. Capaz de mergulhar o usuário para dentro de um ambiente miniaturizado como se fosse uma casinha de bonecas ou um jogo de tabuleiro, a Can-D “traduz” o usuário para o mundo da bela e estonteante Pat Insolente, uma persona fictícia estilo Barbie, cuja vida é uma maravilha ao lado de seu namorado; o mundo de Pat é objeto de desejo e ponto seguro para aqueles que querem escapar aos sufocos da vida real.
Ao consumir a droga os usuários vão para esse mundo, as mulheres se tornam Pat Insolente e os homens seu namorado. Tudo dentro da realidade da “casinha de bonecas” pode durar alguns minutos ou até horas, conforme a dose de Can-D consumida.
A noção de tempo, claro, é completamente desvirtuada nos ambientes de Pat Insolente e esse é um dos grandes atrativos da obra: constantemente ficamos nos perguntando qual parte daquela história toda é uma história concreta? Estamos na mesma realidade ou já estamos na outra? ou naquela outra?
Nas colônias humanas no planeta Marte, a Can-D é uma fuga, uma salvação, quase um culto a ser seguido pelos colonos que vivem em cabanas precárias e sucateadas. Ali todos mastigam a droga, se transportam para o mundinho de faz de conta de Pat Insolente e lá vivem e relembram coisas há muito deixadas para trás num tal planeta Terra.
Nesse fluxo de composição dos ambientes de Pat Insolente, como disse mais acima, um tipo de casinha de boneca, os precogs de Leo Bulero analisam peças de roupa, utensílios domésticos e todo tipo de tranqueira que possa ser reduzida e vendida para compor os ambientes e dar-lhes mais consistência e materialidade numa tradução. Daí vem sua profissão: analistas de pré-moda, o que pode virar um grande fenômeno de vendas ou um grande fracasso é analisado pela percepção precognitiva de pessoas como Fugate e Meyerson.
“Deus promete a vida eterna; nós cumprimos a promessa“.
E não para por aí… Quando Palmer Eldritch retorna de sua viagem de uma década, seis anos de translado, quatro de residência, traz consigo uma estranha substância que, segundo se noticia, tem aval da ONU para entrar no sistema Sol. Batizada de Chew-Z, a substância é também uma droga de tradução e vai ser comercializada de forma legal e disputar espaço contra a Can-D, não aprovada pela ONU para comercialização no planeta Terra, daí ser vendida apenas ilegalmente nas colônias de terra-formação.
Mais poderosa, mais estável e capaz de “traduzir” o usuário sem a necessidade de um ambiente de referência, a Chew-Z também é mais barata de sintetizar e, consequentemente, mais barata de vender. Além de voltar à Terra, Palmer Eldritch entrou no caminho de Leo Bulero de forma avassaladora a ponto de um de seus precogs se alarmar ao vislumbrar um possível futuro onde Bulero é condenado pela morte de Palmer.
Esse é o ponto de partida para uma guerra silenciosa travada por esses dois homens tanto fora quanto dentro de suas próprias mentes. Falar um tanto a mais que isso é estragar muitas das surpresas da leitura… acredite, você não quer que isso aconteça.
Diferentes realidades, diferentes focos narrativos
Quando dá o ponta-pé inicial de seu livro, PKD nos faz acreditar que aquela narrativa vai nos guiar por uma acirrada disputa entre dois homens de negócio que estão na camada limítrofe entre o ofício de empresários milionários e mafiosos milionários.
Mas como boa parte de sua obra, esta primeira impressão dá lugar a um intricado jogo de poder e donimação, não só de mercados, mas sim de mentes e de realidades inteiras. Bulero é um humano artificialmente evoluído, Palmer é um humano alterado, possui um braço cibernético, dentes postiços de metal e olhos artificias também cibernéticos… um tem a Can-D, cuja presença na vida dos colonos é um ponto de fuga, Palmer traz consigo a misteriosa Chew-Z com o slogan assustador de “Deus promete a vida eterna; nós cumprimos a promessa“.
O jogo se arma num tabuleiro que alterna frequentemente as peças em movimento… um tanto caótico em sua organização narrativa, PKD muda constantemente seu foco narrativo e os personagens no centro dele, um recurso muito interessante em alguns casos, mas também um tanto estranho para outros, já que em dadas situações certos personagens apareceram, fizeram algo e depois não tiveram mais papel ativo na trama ou em sua condução.
Alguns casos eu até achei que esses personagens foram construídos como uma certa pressa e deixados de lado para não alongar uma trama já cheia de desdobramentos e ideias.
Só para citar um exemplo, há situações que simplesmente as habilidades dos precogs desaparecem e escolhas são feitas ignorando o fato de que tais personagens poderiam ter dado uma série de outros desdobramentos em certas ocasiões limítrofes, já que as visões de possíveis futors lhes salta à percepção tão logo algo muito drástico esteja no limiar de acontecer.
A colônia em Marte, a disputa pelo espaço das duas drogas de tradução, os ambientes de tradução, a viagem de Meyerson para Marte e sua relação com a ex-esposa, as manipulações de Roni Fugate, os mistérios envolvendo a viagem de Palmer Eldritch ao sistema de Proxima, as visões de Bulero em um ambiente de tradução…
Os focos são muitos e às vezes parece que o autor mergulhou demais em uns e deixou outros numa piscina bem rasa e quase vazia… não que não seja um deleite apreciar a escrita e a trama complexa estabelecida pelo autor, mas fica latente aquela sensação de que há buracos aqui e ali que poderiam ter sido preenchidos com mais substância.
PKD alterna muito entre ser um excelente criador de conceitos e ideias de um lado e ser um excelente narrador de histórias do outro, no meio disso ele é um exímio manipulador; aqui nesse livro ele resolveu por tudo isso em prática, consegui com facilidade, mas deixou a obra um tanto fragmentada no excesso dessas três características em um livro Que poderia ser maior.
Com apenas 248 páginas, o livro poderia ter atingido facilmente umas 400 páginas de conteúdo e trama sem prejudicar em nada o prazer da leitura… é Philip K. Dick, por favor, como toda boa droga de tradução, nunca é demasiado.
Mas não há do que realmente reclamar, uma obra de PKD não pode ser tão linear, retinha e conectada passo-a-passo, estamos falando de uma mente inventiva e que criou obras intrigantes e cheias de conceitos. A fragmentação de sua narrativa não deixa de ser a fragmentação de sua própria mente… Não foram poucas às vezes em que imaginei Eldritch, Bulero e Meyerson como alter-egos de Dick como foi feito em Valis: uma pessoa, múltiplas personalidades e formas de ver o mundo.
Acima de qualquer viagem alucinógena pelos meandros das múltiplas realidades e de como as percebemos, “Os Três Estigmas de Palmer Eldritch” é um daqueles livros submersivos, que te traga para um mundo diferente, mas ao mesmo tempo cheio de similaridades com o nosso mundo “real” (aquecimento global, caçadores de tendência, colonização de Marte etc).
Garantia de momentos inspiradíssimos e de leitura de primeira grandeza, “Os Três Estigmas de Palmer Eldritch” é mais uma obra que enriquece qualquer estante e tem aquele gosto amargo de suspensão do leitor perto de suas últimas páginas… aquela pequena dose de angústia satisfatória que brota em nós quando o fim deixa portas abertas demais para que nossa mente perdure ali dentro daquele mundo mesmo tendo saído por uma delas.
O livro está em nova edição pela Editora Aleph com capa temática e uniformizada para a “coleção Philip K. Dick”. Boa leitura…
Os Três Estigmas de Palmer Eldritch
Num futuro não tão distante, quando o exílio compulsório de um planeta Terra excessivamente quente significa instalar-se miseravelmente em colônias marcianas, a única coisa que faz a vida dos colonizadores suportável são as drogas. Única em sua finalidade, a Can-D “traduz” aqueles que a consomem para uma outra realidade.
No entanto, o surgimento de um concorrente abre uma disputa por esse mercado. Chamada Chew-Z, a nova substância é comercializada sob o slogan “Deus promete a vida eterna; nós cumprimos a promessa”. Mas a questão é: Que tipo de eternidade ela oferece? E quem – ou o que – será seu portador?
- ISBN: 978-85-7657-092-9
- Tradução: Ludimila Hashimoto
- Edição: 1ª
- Ano: 2010
- Número de páginas: 248
- Acabamento: Brochura
- Formato: 14 x 21 cm
- R$ 42,00
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.