Caso a série O Gerente Noturno (The Night Manager no original) tenha passado despercebida pela sua grade de séries, corra atrás do prejuízo o quanto antes. Baseada no livro homônimo do escritor britânico John Le Carré (já em sua quinta edição nacional pela Editora Record), a série emplaca uma excelente produção, ótimo elenco e crítica politizada ao perigoso mercado do tráfico internacional de armas.
Os astros britânicos Tom Hiddleston e Hugh Laurie dispensam apresentações para o grande público e ambos são as estrelas no palco da minissérie The Night Manager, uma narrativa cheia de detalhes, minúcias, beleza, complexidade, corrupção e manipulação de todos os tipos. Jonathan Pine (Tom Hiddleston) é um ex-soldado que serviu nas forças britânicas na ocupação do Iraque nos eventos que se seguiram aos atentados do 11 de Setembro contra as torres gêmeas.
Pine é, em 2011, ano que se inicia a jornada do personagem na série, o gerente noturno do luxuoso hotel egípico Nefertiti na cidade do Cairo. Pine transita por um tumultuoso protesto que se espalha pelas ruas na ocasião da chamada Primavera Árabe que culminou com o fim de vários regimes ditatoriais em diversos países do chamado “mundo árabe”. Os protestos que cercam o hotel Nefertiti são os que culminam com o fim de um mandato de 30 anos do ditador Hosni Mubarak no Egito.
Exercendo sua função, Pine é requisitado por uma bela e misteriosa mulher chamada Sophie Alekan, amante de um influente jovem de família rica chamado Freddie Hamid. Sophie está de posse de documentos que revelam uma transação ilegal de venda de armas entre a família Hamid e o mega-empresário Richard Onslow Roper (Hugh Laurie), cuja fachada de bem-feitor mundial e filantropo das causas humanitárias o faz transitar livremente por diversos países e fechar negócios de forma oculta no sombrio mercado de tráfico de armamentos de guerra.
A pedido de Sophie, Pine copia os documentos comprometedores, mas ciente da importância do que tem em mãos, decide repassar as informações para agências de inteligências e contra-terrorismo britânicas; a ação custa caro e Sophie é ferida e ameaçada de morte por seu ex-amante, Freddie Hamid por conta da descoberta do vazamento dos documentos.
Culpado pelo mal indiretamente causado contra Sophie por suas atitudes, Pine se encarregada de proteger a moça da família Hamid, inclusive pedindo exílio e proteção em território britânico dentro de um programa de proteção para testemunhas através do intermédio de Angela Burch (Olivia Colman) que, há anos, está no encalço de Richard Roper e seu cartel de compra e venda de armas ilegais.
Assim começa o primeiro contato do solitário e introspectivo gerente noturno com um mundo obscuro, corrupto e manipulador.
Richard “Dick” Roper é um homem rico e poderoso, dono de um charme típico dos britânicos, educação refinada, elitista até a alma, residindo em uma belíssima mansão ao lado da igualmente bela Jed Marshall (Elizabeth Debicki) a quem trata como uma espécie de “troféu” a ser exibido e, esporadicamente, com seu filho, fruto do primeiro casamento. Roper vive no luxo e conforto de um império erguido de forma inescrupulosa enquanto o mundo imagina que ali há um grande homem lutando por um mundo melhor, quando na verdade é um dos responsáveis pelas inúmeras e constantes pequenas guerras ao redor do mundo.
Dono inclusive de uma base de operações e de um pequeno exército de mercenários dispostos a atuar em prol de pagamentos que equivalem a pequenas fortunas, Roper praticamente realiza pequenos shows ao demonstra o poder e a qualidade de seus produtos “agrícolas” para seus clientes.
Mas todo grande empreendimento precisa de mentes aguçadas e insensíveis, um rei apenas não consegue erguer um império. Ao lado do mega-empresário estão sempre seus escudeiros e homens de confiança:
- O brutamontes Frisky, violento, carrancudo, olhos atentos a todos, Frisky é o cão de guarda e segurança de confiança máxima de Roper;
- O articulado, cínico e dissimulado advogado Sandy Langbourne, responsável pelas negociações e processos jurídicos na criação das empresas de fachada de Roper, marido infiel, diga-se…
- O extrovertido, observador e letal Lance Corkoran, lobo em pele de cordeiro define o baixinho esquentado, sempre vigilante aos passos da esposa do patrão. É do pesonagem uma das frases mais perniciosas da série: “de todas as frutas desse pomar, aquela é a única que você não pode provar” (se referindo a Jed para Pine).
O quarteto do apocalipse viaja ao redor do mundo criando empresas de fachadas, sociedades com “laranjas” e uma série de outras camuflagens que os permitem transportar armamento pesado sob a insuspeita cobertura de suprimentos e máquinas agrícolas que Roper utiliza em suas ações humanitárias de desvio de atenção.
No encalço de Roper há anos, Angela Burch tem a oportunidade de ouro de por suas mãos no contrabandista milionário quando, em uma segunda ocasião, Pine tem seu caminho cortado pela presença das negociações de Roper e seu cartel e o contato entre Pine e Angela é retomado com um interesse comum: derrubar Roper de seu pedestal, cuja manutenção e segurança passa por contatos e interesses obscuros inclusive dentro do governo britânico.
The Nigh Manager : A serviço de Vossa Majestade…
De posse do necessário, Pine e Angela armam um perigoso esquema para infiltrar o ex-gerente entre as fileiras de confiança de Roper. Cientes de que ganhar a confiança do mega-empresário não seria uma tarefa fácil, pouco ou quase nada da vida de Pine sobrou e uma série de informações sobre o passado do gerente noturno são plantadas, forjadas e construídas para que um novo homem surgisse e tivesse as credenciais necessárias para chamar a atenção de Dick Roper.
Nesse empreitada não há aliados em quem realmente confiar, e aqui e ali Angela e Pine tem o apoio sutil do agente americano Joel Steadman, que também tem interesse em interromper definitivamente as operações de Roper desde um incidente passado no Iraque anos antes. Junta forças ao pequeno time Rex Mayhew, amigo e superior de Angela; Rex é membro do serviço de inteligência britânica e o homem que precisa lidar com os burocratas, demagogos e escalões de poder que em nada se empenham para mudar os rumos da situação vigente.
Praticamente oculto e sem o conhecimento das autoridades superiores a Angela, Pine se infiltra com sucesso na organização de Roper e começa um perigoso jogo para encontrar as provas das operações de venda e transporte de armamentos. Mas esse nem chega a ser o jogo mais perigoso do lado de dentro das fronteiras da fortaleza de Roper: a beleza de sua esposa, Jed, acaba por atrair os olhares de Pine e surge entre a bela mulher (ora tratada com certo descaso de um lado, ora com ares de troféu por outro) e o atraente e misterioso visitante uma atração cada vez mais intensa (de onde vem a origem da frase de Cork)
Sem nenhum tipo de cobertura ou proteção oficial, justamente para proteger Pine dos contatos ocultos de Roper dentro dos escalões da inteligência britânica que “protegem” os negócios de Roper, Pine vai se inserindo gradualmente nos negócios, vai minando a confiança de Roper em alguns de seus seguidores e a medida que essa mesma confiança em sua própria pessoa aumenta gradativamente. Mas seu interesse por Jed acaba sendo uma incógnita dentro dos futuros resultados nas ações de Pine que, em dado momento da minissérie, acaba se tornando tão inescrupuloso quanto o próprio Roper para obter seus objetivos.
Para obter sucesso não foi suficiente um bom disfarce, um histórico forjado e consistente, não foi suficiente obter cópias de documentos incriminatórios, rotas de despacho e nomes de contatos… foi preciso entrar no jogo e seguir suas regras, mesmo que para isso seja necessário perder um pedaço de sua alma nesse processo… afinal de contas, quem compactua com o diabo precisa aprender a dançar entre as chamas.
The Night Manager: dois homens de olhares sutis
Erguida sobre a coluna dorsal do polêmico tema das guerras financiadas pelas grandes nações, The Night Manager aponta sua lente de aumento para um foco extremamente interessante: aqueles que lucram, e muito, com esse mercado e constroem fortunas sobre as cifras da morte.
Ao apontar sua lente para esse foco, a série acaba por mostrar, através do luxo, da beleza, da riqueza, das belas pessoas tomando bebidas caríssimas em paisagens igualmente belas o quão é cruel um mundo baseado no comércio de guerra.
Talvez os menos avisados possam imaginar que a série tem o que há de mais perfeito hoje em termos de beleza e estereótipos: Jed, Roper, Sophie e Pine… corpos belos, sensualidade exalando a cada poro da pele, algumas cenas chegam a ser covardes contra nós, meros mortais. Mas aí reside o que temos de pior no mundo; enquanto quem negocia armas está no luxo, na riqueza, gozando dos prazeres de uma vida repleta de viagens a belos lugares, em algum ponto por aí uma pequena cidade ou aldeia é bombardeada, é metralhada e riscada do mapa como se nem tivesse existido ali antes… e ninguém se importa.
Se algum governo ditatorial está em guerra civil pondo lança-foguetes nas mãos de crianças, jovens e adultos que lutam por um ínfimo pedaço de qualquer coisa, por trás disso há uma garrafa do mais caro vinho da Toscana, um vestido comprado para a jovem e bela esposa de algum magnata… Tudo financiado com as armas vendidas por pessoas como Richard “Dick” Roper.
Ao virar a câmera para o lado de quem fornece e não de quem usa, The Night Manager lance sobre nós uma perspectiva sinistra: quantos homens de bem, ricos, bem sucedidos, bonitos, bem casados não fazem parte de algum inescrupuloso negócio que acontece com o total e irrestrito apoio das esferas de poder? Quantos Dick Roper não estão aí, arregimentando fortunas e vivendo do bom e do melhor enquanto sequer podemos ver o resultado de suas reais ações? Os que são riscados do mapa por essas guerras e armas invisíveis já estão riscados do mapa há tempos…
Erguida sobre um excelente elenco, com um roteiro detalhadíssimo e tenso em muitos momentos, a série nos brinda com dois gigantes em tela: Tom Hiddleston e Hugh Laurie em cena são sempre espetaculares. Cada um a seu respectivo modo preenche a tela com um talento espetacular para construir seus personagens.
Hiddleston e Laurie brindam o telespectador com suas sutilezas, ambos ingleses, extremamente elegantes, cada um a seu jeito, ambos entregam as nuances do homem com objetivos supremos para si mesmo e cujo caminho até eles não permite interferências nem percalços, mesmo que alguém próximo seja extremamente machucado nesse processo.
As sutilezas dos olhares, dos sorrisos, os gestos quando algo ali foge do previsto, quando algo precisa ser dissimulado ou simulado para que um delicado e fino equilíbrio não seja rompido.
Ao redor de ambos, claro, se apresenta um elenco soberbo de apoio que monta pedaço por pedaço cada episódio com maestria. Sobretudo a belíssima e igualmente talentosa Elizabeth Debicki, cuja importância dramática da série fica no exato epicentro da tensão entre os personagens Pine e Roper.
Construída de forma ágil e ao mesmo tempo detalhada, a minissérie é uma metralhadora giratória, desculpem o trocadilho, de informações na tela. Os detalhes das operações, a função dos personagens, os focos narrativos diversos, as situações impactantes, as decisões tomadas para guiar a narrativa de forma coerente, tudo em The Night Manager é feito meticulosamente na direção da construção de um excelente thriller de conspiração e espionagem moderna com um fator crítico e politizado bem evidente. Não por menos, a influência da obra de Le Carré está aí quadro a quadro.
O elenco de primeira, as locações estonteantes, o tema polêmico, a tensão dramática de muitas passagens narrativas, o tom extremamente atual e contemporâneo e claro, toda a dinâmica da narrativa das obras de John Le Carré dão a The Night Manager um Quê de elegância, zombaria, crueldade e tragicomédia.
Vale o tempo investido em prestar atenção nos detalhes, sobretudo do complexo e detalhadíssimo primeiro episódio que deixa vários ganchos para serem puxados ao longo dos outros episódios. Definitivamente uma atração de extrema qualidade e produção praticamente impecável, The Night Manager é altamente recomendada.
Talvez o único senão sobre o material foi ter abandonado ainda nos primeiros episódios os contextos atuais e/ou históricos que tão bem deram o tom ao seriado. Os protestos no Egito, as menções às intervenções no Iraque das quais Pine fez parte nas forças especias britânicas, por exemplo, deram intenso significado ao tema principal da série, mas depois a abordagem mais generalista em prol do drama dos personagens acabou sobrepujando essa abordagem real e histórica do tema.
Acredito que o texto do seriado poderia ter seguido essa linha de acontecimentos reais e contemporâneos para refletir ainda mais sobre nossos problemas e conflitos. The Night Manager é uma produção da BBC One e foi ao ar no dia 22 de fevereiro no canal AMC, no horário de 22:30hr.
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.