Um dos mais sedutores mitos relacionados a criaturas sobrenaturais, sem dúvida alguma é o do vampiro. Como muitos adoro a temática, mas faz um bom tempo que não sou arrebatado por nada de interessante neste meio, telona ou telinha, tanto faz, as decepções são consecutivas, aqui dou um olá para The Strain que se perdeu na segunda temporada, Drácula – A História Nunca Contada é até legalzinho, mas falta charme, sedução e uma carga de sexualidade, algo fundamental na construção destas criaturas tão maltratadas nas últimas décadas pelo audiovisual.
O último bom exemplar ficou por conta de Deixe Ela Entrar/Deixe-me Entrar (versões sueca e americana), do segundo, o mais recente no caso, já se passa quase uma década.
Vasculhando minhas listas de dicas, acredito que estas são um meio de ressaltar coisas importantes ou não, vez por outra anoto uma lista de obras que preciso conferir. Estas dicas surgem de indicação de amigos, ou de algum site de entretenimento ou mesmo por ter detectado algum elemento que me chame atenção na mesma.
No caso Byzantium, estava em uma delas faz tempo, tem atrativos mais que interessantes, fala de vampiros, tem na direção Neil Jordam, 17 anos após Entrevista com Vampiro, retornando a este universo e a competente e deslumbrante Gemma Arterton.
Com todos estes atributos a favor de Byzantium, confesso que demorei para vê-lo. Ultimamente cada vez mais fui fisgado pelo mundo das séries de TV ou streaming, que contam com inúmeras obras sedutoras saindo a todo momento sem dar tréguas a legião dos viciados em séries. Com isso acabei deixando o cinemão um pouco de lado.
Mas aí, o universo conspira e depois de ter visto um outro filme de terror, Assim na Terra Como no Inferno, bateu aquela vontade de continuar a imersão por essas pradarias, Byzantium me pareceu a escolha óbvia, afinal estava devendo este passeio pelo novo universo de vampiros de Jordan.
Byzantium | A obra
Em linhas gerais Byzantium está centrado em Clara/Gemma Arterton, uma jovem mãe vampira que transforma sua filha Eleanor/Saoirse Ronan. O segredo de que as duas sobrevivem com sangue humano começa a se espalhar e o passado das mulheres vai voltar para assombrá-las.
A primeira coisa que me instigou na película foi o apuro visual, Byzantium funcionou para mim como uma pintura, onde cada camada de tinta vai sendo realçada com o desenrolar da trama, propositalmente lenta, como o ritmo da andança de quem já atravessa o tempo há 200 anos.
Tons de dourado, vermelho e um azul acinzentado estão presentes constantemente na tela, compondo uma atmosfera bela e sedutora e dando uma dramaticidade a passagem do tempo quase como um elemento tangível.
Mãe e filha são nômades, tanto pela condição imortal de não poder fincar raízes por tempo demais num local, tanto como por ficar claro que estão sendo caçadas. Um mistério maior, que somente Clara sabe as entrelinhas, veio cobrar o encerramento de um ciclo iniciado há dois séculos.
Doces e Letais Vampiras
Clara atravessa as décadas que se acumulam como uma prostituta, usando o esplendor de sua imagem magnética e voluptuosa, uma verdadeira deusa profana, transpirando sensualidade e provocando desejo imediato. Ela caça os que considera opressores, este é seu código e sentença.
Já a introvertida Eleanor, vaga como um espectro através do tempo, toda dor do fardo da imortalidade é impressa em seus escritos, que oportunamente são descartados e que servem de isca para suas presas. Ela também criou seu critério de caça, no qual repousa uma certa nobreza, onde ela atua como um verdadeiro anjo ceifador, buscando pessoas que talvez não temam e até anseiem pelo beijo espectral da morte.
Clara e Eleanor, duas poderosas predadoras com estilos diferentes, porém ligadas como mãe e filha suas jornadas se tornam mais tempestuosa. Com direito a conflitos, desavenças e todos os dilemas de uma relação que se para humanos normais já traz uma carga dramática enorme imagine isto atravessando os séculos.
Neste contexto da trama Neil Jordan consegue mais um ponto comigo, pois ao exacerbar o fator humano mostra que este é imprescindível até mesmo para manter a paixão de seres imortais pelo mistério e finitude que se traduz em estar vivo ou simplesmente existir.
Com o avançar da jornada somos apresentados a Irmandade, que se revela como uma seita que quer eliminar Clara e Eleanor, por ferirem os preceitos do grupo, já que não toleram vampiras e muito menos que procriem. Logo percebe-se que Clara e Eleanor, mesmo imortais não estão livres do jugo de comportamentos e crenças instituídos que atravessam o tempo aniquilando mulheres. O patriarcado numa analogia oportuna e pertinente.
Em suas constantes andanças ambas se estabelecem numa pensão chamada Byzantium, local de propriedade de um dos clientes de Clara, que de forma conivente acaba deixando que a mesma transforme o local num prostíbulo.
A pensão é um organismo vivo, uma espécie de covil onde o tempo parece se perder. A decoração e arquitetura antiquadas gritam o peso do tempo a toda cena que explora as dependências da mesma.
Eleanor em suas caminhadas pela redondeza conhece Frank (Caleb Landry Jones) com quem estabelece um melancólico relacionamento já que o rapaz está com leucemia, e ela carrega o segredo que é uma imortal que se alimenta de sangue.
O cenário está formado, tudo é apresentado de forma cadenciada, Jordan constrói a trama com inventividade, principalmente ao usar duas linhas temporais onde os imortais são expectadores de seu passado.
A obra abre mão de elementos pitorescos ao universo dos vampiros, não veremos presas pronunciadas, nem transformações através de mordidas, força sobre humana, velocidade e agilidade são atenuados e ficam quase imperceptíveis o que me deixou em dúvida se fazem parte dos atributos das criaturas. Estacas e a luz solar como fatores que possam destrui-los são deixados de lado, não temos metamorfoses e nem criaturas monstruosas, o fator humano prevalece, entedi que a imortalidade é uma condição sem muitos requintes fantásticos em Byzantium.
A falta destes elementos inicialmente me incomodou, já que somos condicionados há décadas com esta construção do imaginário dos vampiros, mas da forma como a trama foi conduzida acaba criando um apelo bem particular para a película e funciona no contexto da mesma, me deixei levar pela proposta!
Porém um elemento clássico é ressaltado, servindo como uma metáfora, onde mudanças só podem ocorrer se permitirmos que elas entrem em nossas vidas!
Mais uma sutileza saborosa em Byzantium.
Um ponto inusitado que me agradou bastante é relativo a transformação que ganha um elaborado processo, ocorrendo em uma ilha específica envolta em mistérios como se estivesse a parte da realidade. Nela se dá o encontro com uma criatura sobrenatural o “Santo Sem Nome”, que transforma os que foram levados até ele, o processo repousa literalmente numa escolha de abraçar a escuridão para alcançar a imortalidade.
A transformação ganha mais um devaneio estético quando as águas que jorram de cachoeiras, que prevalecem na paisagem da estranha ilha, assumem um tom escarlate anunciando a criação de mais um “Sucrientes” como os vampiros são denominados na obra!
Byzantium se consagra em minha memória afetiva como um breve suspiro, onde Neil Jordan conseguiu de forma charmosa tratar de um universo desgastado, além de abordar temas como empoderamento feminino e representatividade com sobriedade, afinal as vampiras são o caminho para a evolução e continuação da estirpe dos imortais deste universo, nelas repousa a força de transformação.
Não poderia deixar de frisar que o cinema não vive sem a música e a de Byzantium é linda e melancólica, marcando presença como uma criatura ancestral. A trilha sonora ficou ao encargo de Javier Navarrete, que já nos presenteou com a onírica trilha sonora de O Labirinto do Fauno!
Outro ponto alto do filme é Saoirse Ronan que entrega mais uma atuação que justifica o seu status de uma das atrizes mais talentosas de sua geração, junto com Gemma Arterton transbordam carisma em cena.
Uma obra que passou despercebida
Byzantium não teve hype, em tempos onde tudo tem que assumir um ar “épico” ou de “obra prima” ele passa ao redor disso, o filme não reinventa o gênero e nem é a salvação dos vampiros e na verdade não precisa destes atributos. Mesmo tendo seu nome atrelado ao de Neil Jordan se resume a uma obra competente e agradável, e isso para mim é mais que suficiente.
Possivelmente o filme não tem a força necessária para uma continuação, mesmo oferecendo várias pontas soltas que poderiam expandir e explorar facilmente este universo. Talvez seja melhor assim, que fique como uma referência de que ainda se pode contar boas histórias sobre estas criaturas.
Coincidência ou não As Crônicas Vampirescas de Anne Rice foram anunciadas recentemente como uma série de TV, sendo assim não ficaremos órfãos por tanto tempo de uma obra rica sobre estes seres imortais. Torço para que seja um reencontro tórrido com os apaixonantes vampiros.
Trailer | Byzantium
Sobre o Autor
É Bacharel em Psicologia, porém optou por sua grande paixão trabalhando como ilustrador e quadrinhista. É sócio do Pencil Blue Studio e Ponto Zero, podendo assim viver e falar do que gosta: quadrinhos, cinema, séries de TV e literatura.