Um professor de História há muitos anos falou que um povo que não conhece sua história, sua trajetória, suas origens e seu passado está destinado a cometer os mesmo erros no presente e no vindouro futuro.
Durante toda a leitura de A Infância do Brasil do quadrinhista José Aguiar, esse pensamento me acompanhou a cada balão de fala, a cada quadro, a cada personagem e suas pequenas histórias ao longo de 5 séculos de Brasil…
Mais do que um belo material de quadrinhos nacional, A Infância do Brasil é uma bela viagem no e através do tempo, assim como também é um convite para refletir sobre quem fomos, quem somos e quem seremos como pátria, como nação, como povo.
Empreendido com maestria por Aguiar a partir do consistente trabalho de pesquisa histórica resultante da consultoria feita pela historiadora Cláudia Regina B. Moreira, a HQ dialoga com o surgimento de nosso país a partir de suas primeiras “vilas” incrustadas no meio da selva densa e verdejante, avançando até os dias atuais, quando tudo ainda está envolto numa selva, dessa vez de concreto, vidro, aço e indiferença social, política e cultural.
Dividido cronologicamente nos 5 séculos de nossa história, A Infância do Brasil pontua cada um desses séculos a partir da perspectiva de como se dá o papel das crianças na sociedade brasileira.
A crueldade e a precariedade da colônia em seus primeiros passos é a marca do primeiro século/capítulo da obra.
Essencialmente patriarcal, a colonização portuguesa avançou terreno adentro e tanto escravos como povos indígenas cruzaram caminho com o “homem branco” que, ora invasor, ora senhor de escravos, espalhou não só sua religião, mas também suas sementes que marcaram a miscigenação de nosso país.
Miscigenação essa nada pacífica, nada romantizada em sua quase totalidade. A preferência por um filho homem era fundamental – uma regra ou exigência – a mortalidade das crianças e mães uma constante. Pessoas e coisas não eram (não são) tratadas de formas muito diferentes.
A firmeza no traço de Aguiar é fundamental para transmitir a densidade e peso dessas coisas atiradas contra nós na arte e no texto.
No séculos seguintes a coisa não melhora nada. As missões religiosas se embrenham ainda mais na mata em busca de almas para converter ao catolicismo europeu. Os jesuítas desempenham papel fundamental no processo colonial e ter como foco as crianças indígenas para a conversão era algo muito mais prático, ao menos na teoria.
Menos carga cultural, menos dogmas a serem quebrados e novos a serem implantados nas mentes dos pequeninos. Trazidos das aldeias já com sintomas das doenças dos “brancos”, muitos não tinham sequer condições de sobreviver realmente, os que conseguiam se manter de pé, era questão de pouco tempo até buscarem outros rumos ou buscar novamente os caminhos da mata até suas aldeias.
No século seguinte as ruas ganham destaque quando filhos indesejados ou bastardos, vistos como “uma boca a mais” na grande maioria dos casos, frutos de adultério ou de estupros, eram deixados para adoção nas casas de acolhimento ou rodas de misericórdias para serem recolhidas e levadas para serem criadas até os sete anos de idade.
Depois disso deveriam trabalhar para custear sua estadia ou tentar a sorte nas ruas, sujeitos a toda sorte de intempéries naturais e humanas. Violência, furto, fome, falta de higiene. Essas eram a realidade das crianças enjeitadas no terceiro século de nosso país.
No século seguinte a expectativa do fim da escravidão dava fortes sopros de esperança para a população de escravos do país. Os filhos dos escravos, na letra, nasciam livres. Mas ficava a questão: como uma criança poderia ser livre e deixar seus pais no cativeiro e sobreviver sem eles no mundo de fora das senzalas?
Um impossibilidade que legou ao escravagismo as crianças nascidas sob o signo da Lei do Ventre Livre. Humilhados, ofendidos, massacrados pelos donos de seus pais, essas crianças não tinham nenhum direito, nenhum lugar para onde ir ou sustento para. As injustiças sociais ainda oprimiam o povo negro trazido para a colônia.
Um negro adulto não era visto como gente, uma criança negra não era vista como uma criança, nem mesmo que a letra da lei disse que era livre já no ventre de sua mãe.
No começo do século XX surge uma nova figura na história do pais: o trabalhador urbano. Durante a revolução de 1930 de Vargas e a crescente industrialização de nosso país marca um ponto de virada na estrutura social.
Não são mais só os homens que ocupam os postos de trabalho: mulheres e crianças passam a dividir com estes pais e maridos a dura tarefa de ocupar os postos de trabalho em condições sub-humanas.
Os baixos salários ou a ausência dos homens no seio familiar levava a força de trabalho da mulher para fora do lar, dando-lhes a tão injusta jornada dupla de trabalho. A cultura americanizada começa a invadir o imaginário popular com mais força e os ventos da guerra sopram forte sobre todas as nações do século XX.
Muito dessa época atravessou o século XX e chegou até os dias de hoje marcando profundamente nossa sociedade e a postura de nossa sociedade.
No jovem e indefinido século XXI a realidade social é forte variante. Desemprego, crises econômicas, pobreza extrema, concentração de capital cada vez maior na mão das minorias, as lutas de classe estão intensas e evidentes em outros sentidos: escolas particulares caríssimas, escolas públicas sucateadas e crianças vistas como um investimento potencial para o futuro de um lado, crianças vivendo do lixo alheio do outro.
A realidade dos primeiros anos do século XXI estão ainda está se delineado e a conscientização de que algo precisa melhorar é latente em várias camadas sociais. Os adultos de hoje precisam lutar para garantir o presente e o futuro de nossas crianças.
A Infância do Brasil | Crítica, História, Reflexão
A Infância do Brasil é um material que se torna forte por si mesmo, não precisa muito para o leitor perceber a veia crítica que o material de Aguiar nos impõe. Forte e consistente, o texto nos convida constantemente a refletir sobre a construção de nossa sociedade e da posição de nossas crianças nesse processo.
Enquanto as profundas desigualdades de nossos processos históricos persistirem, quase nada de futuro será garantido para o próximo século de nossa história.
Ao aliar a consistência de uma pesquisa histórica com um traço firme e forte, Aguiar reforça uma sensação persistente de que nossas crianças serão sempre um elo fraco em nossa corrente social. Com personagens expressivos em vários sentidos, a arte de Aguiar é elegante e tem aquele quê característico do desenhista mais undergrounds, o que funciona a contento para o tom da obra.
Se o traço e o texto estão em perfeita sintonia, vale dizer que são as cores que roubam a cena realmente. Em tons que remetem ao sépia, a colorização de A Infância do Brasil é belíssima e realmente nos trás a forte sensação de deslocamento temporal no percurso ao longo da HQ.
Nas cenas da mata fechada, são as cores que nos lembram da densidade de nossas matas e florestas com os fachos de luz atravessando aqui e ali as frondosas copas das árvores. Tudo muito lindo e clareando a medida que o tempo em séculos avança até os dias atuais. Meus parabéns ao colorista Joel de Sousa pelo trabalho irretocável sobre a arte de Aguiar.
Para além do entretenimento com conteúdo inteligente, A Infância do Brasil tem o imenso e rico potencial de ser uma obra didática no sentido literal, podendo ser tranquilamente levada para as salas de aula e utilizada como material de apoio para discussões nas aulas de História, Antropologia, Filosofia, Sociologia etc. Pontos extras com absoluta certeza.
Com acabamento de primeira, A Infância do Brasil tem capa cartonada de ótima gramatura, mas senti falta apenas de uma orelha na capa para ajudar a evitar o “canoamento” da mesma. O papel do miolo é couché fosco de 115g.
Se você é um leitor que curte HQs de modo geral, vai sem dúvidas embarcar na proposta de A Infância do Brasil e seu texto inteligente e pertinente. Com auxílio da arte de Aguiar e das cores de Sousa, A Infância do Brasil vale investimento não só por essas características, mas também por mostrar que é possível ao nosso mercado de HQs embarcar em sua própria História e encontrar nela substrato rico em nutrientes para contar outras ótimas histórias menores, mas não menos importantes e pertinentes.
A Infância do Brasil de José de Aguiar está disponível no catálogo da Avec Editora desde agosto passado.
A Infância do Brasil | José Aguiar
É artista, arte-educador formado pela FAP (Faculdade de Artes do Paraná) e quadrinista premiado com obras publicadas no Brasil (Vigor Mortis Comics, Ato 5, Revolta de Canudos, Dom Casmurro em Quadrinhos, MSP50, entre outras) e França (série Ernie Adams).
Publica as tiras Nada Com Coisa Alguma no jornal Gazeta do Povo e também as tiras Folheteen, no Guia Curitiba apresenta (publicação da Fundação Cultural de Curitiba). É um dos criadores e curadores do Cena HQ, evento que realiza leituras dramáticas de HQs no Teatro da Caixa.
Foi curador e cocriador da Gibicon – Convenção Internacional de Quadrinhos de Curitiba. Seus mais recentes livros publicados foram Folheteen – direto ao ponto e Reisetagebuch – Uma viagem ilustrada pela Alemanha.
A Infância no Brasil pode ser adquirida na loja online da AVEC editora e na Amazon.
A Infância do Brasil por José Aguiar
Em A Infância do Brasil, o premiado quadrinista José Aguiar lança seu olhar sobre a História do Brasil não pela perspectiva dos grandes eventos, mas pela das pessoas comuns, pelo viés da infância.
Nela o autor atravessa nossa história cheia de contradições, abusos, descaso, abandono, entre outras situações que insistem em não ficar para trás. A Infância do Brasil é sobre refletir o presente a partir do nosso passado para, quem sabe, projetarmos um futuro melhor.
Esta edição ainda conta com prefácio da historiadora Mary del Priore e textos finais sobre o contexto histórico de cada capítulo.
AVEC EDITORA
A AVEC EDITORA foi criada em 2014 para trazer o melhor da literatura, principalmente da literatura fantástica, para seus leitores. Não queremos apenas editar livros, desejamos estar próximo dos leitores e dos autores.
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Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.