Especial Charlie Donlea: temas, estilo e narrativa

Olá! Me chamo Orlando Simões e hoje vim pregar o evangelho de Charlie Donlea…

Lançado no Brasil pela Faro Editorial, Charlie Donlea estreou aqui em 2017 com seu primeiro livro chamado A Garota do Lago. Com belo projeto editorial e bastante cuidado na publicação, a editora entregou ao leitor brasileiro uma oportunidade de ouro de prestigiar essa estreia em grande estilo.

Charlie DonelaCharlie Donela trouxe em seu repertório a boa história de crime com muitos suspeitos, muitos pontos de vista, muitas pistas, muitas direções e possibilidades, tudo para deixar o leitor preso da primeira à última página de suas narrativas, grandes mosaicos ou grandes quebra-cabeças vistos por diferentes focos.

A estreia com A Garota do Lago nos apresentou um Charlie Donlea em processo de autodescoberta, de teste e erro de seu próprio estilo. Um autor em construção construindo uma obra consistente, sem medo de testar e errar à medida que avança, um autor que narra com frescor até mesmo juvenil sua história de crime, mistério e dúvidas.

Acredito que o melhor dessa estreia seja justamente essa novidade, essa pureza típica de um autor estreante e meio imprudente, meio tateando aqui e acolá para pegar o jeito da coisa, o que nos trás algo mais puro, limpo, ainda meio bruto, mas que prenuncia as marcas que pontuarão os livros que vindouros pelas mãos de Donela.

Particularmente considero esse tipo de experiência muito positiva, pois permite a nós, leitores, crescermos juntos com o autor e sua obra. A sensação que tive ao ler A Garota do Lago foi sim a de encontrar um livro de um escritor iniciando, ainda com muitos clichês, alguns vícios de iniciante, muitos testes, algumas partes com pouco aprofundamento e outras mexidas e remexidas além do necessário e, justamente nessa experimentação consciente entre zona de conforto e risco, reside muito do charme do primeiro livro de Charlie Donlea.

Em muitos pontos de sua narrativa de estreia, Charlie Donlea já marca seu terreno de conforto e zona de domínio narrativo: a morte cercada de mistérios, uma cidade do interior dos Estados Unidos e os jovens protagonistas vivendo alguma fase de transição de suas vidas.

Esse tripé acompanhou o escritor em seus dois livros subsequentes também lançados aqui pela Faro Editorial; obras que retomarei em minha tarefa de pregar o evangelho de Donlea posteriormente.

Mas ao invés de repetir a “fórmula” mágica do crime complexo e das muitas pistas falsas deixadas para o leitor procurar um suspeito, Charlie Donlea amplia essa perspectiva sobremaneira e o autor que escreveu A Garota do Lago já é muito, muito melhor no segundo livro chamado Deixada Para Trás que sim, tem muitos dos pontos caros ao autor, porém se dimensiona de forma bem mais coesa, madura, inteligente e forte que seu antecessor.

E o que dizer ainda do Charlie Donlea que escreveu Não Confie em Ninguém? Um thriller investigativo que caminha na atualidade da coqueluche dos documentários seriados sobre crimes e assassinos que, possivelmente, foram condenados injustamente. Em apenas três livros temos um autor que saiu da infância diretamente para a idade adulta e lá se mantém e deixa antever as muitas possibilidades de livros futuros de uma trajetória meteórica, mas que não degrada em seu caminho, pelo contrário, se expande.

Charlie Donlea | As características de uma narrativa multifacetada

O lugar da mulher como protagonista na narrativa de Charlie Donlea

De cara o leitor já percebe que Donlea tem imenso apreço pelo papel feminino como centro irradiador de suas tramas, ao mesmo tempo em que ele coloca algumas de suas personagens como vítimas de crimes hediondos, ele também as coloca como elemento que move as engrenagens em busca de justiça, entendimento, redenção e castigo de assassinos cruéis e perfeitamente reais.

Se a morte e a violência rondam as mulheres na narrativa de Donlea, a inteligência, a coragem e a ousadia também são características marcantes de suas protagonistas, sempre dispostas a ir um pouco além, superar limites e tensões para desmanchar a trama que as cercas. Queda e redenção são as dualidades da balança narrativa das mulheres escritas por Donlea.

A Garota do Lago Faro EditorialEm A Garota do Lago temos já nas primeiras páginas a fortíssima cena do assassinato de Becca Eckersley com requintes de crueldade e violência (isso não é um spoiler, acredite)… não numa alusão, não num recurso gratuito, mas sim como um alerta do que se construirá ao longo de todo o livro.

Donlea utiliza sua obra como um alerta, ora sutil, ora escancarado de que o mundo é excessiva e desnecessariamente cruel contra a figura da mulher, seja física, mental ou psicologicamente.

Ao mesmo tempo em que Becca Eckersley é retirada de nós de forma tão brusca, também recebemos de braços abertos a repórter investigativa Kelsey Castle, ela mesma vítima de uma violência que ao longo da narrativa vamos descobrindo detalhes e aspectos que tornam Kelsey a pessoa ideial para escrever sobre o assassinato de Becca Eckersley, um crime cercado por dúvidas, silêncios e lacunas obscuras.

A ligação entre as duas personagens vai gradativamente sendo construída enquanto Castle estabelece uma linha do tempo e constrói a narrativa que culminou na noite em que Becca foi violentamente morta. Nesse trajeto as duas mulheres se misturam em seus dramas enquanto Donlea nos mostra passado e presente caminhando paralelamente pelos focos narrativos das duas personagens.

As duas protagonistas de A Garota do Lago vão se completando e nesse processo suas personalidades e narrativas distantes no tempo vão se entrelaçando, entremeando e nos desvelando as lacunas da história de Becca, que em alguns momentos, se confunde com a de Castle nos tons psicológicos da violência que caiu sobre a repórter e só ao longo da leitura entendemos o que é esse elo tão forte entre essas duas mulheres.

Deixada para trásEm Deixada Para Trás, Charlie Donlea utiliza novamente mais de uma protagonista para narrar sua trama, mas dessa vez são três mulheres vivendo o drama do sequestro: Nicole Cutty e Megan McDonald são muito diferentes, diametralmente opostas, água e óleo, claro e escuro… ambas foram misteriosamente sequestradas; Nicole nunca voltou, Megan reaparece misteriosamente e Livia, irmã de Nicole, empreende uma busca desesperada por pistas que possam esclarecer o desaparecimento da irmã que todos parecem ignorar.

Enquanto Becca e Kelsey se complementavam e se aproximavam ao longo da narrativa de A Garota do Lago, Megan e Nicole caminham em rumos opostos e ao mesmo tempo em rota de colisão devido às muitas diferenças entre ambas. Uma disputa que se estende de forma conceitual até mesmo quando as garotas são sequestradas de forma misteriosa…

Em um segundo momento da narrativa, fator que se torna um recurso primoroso na obra de Donlea, Megan e Livia, a irmã mais velha de Nicole, acabam cruzando seus caminhos na busca por resposta um ano depois do sequestro das garotas e, mais uma vez, Donlea trabalha a perspectiva feminina por justiça, compreensão e paz interior numa cruzada não só pessoal, mas acima de tudo, numa cruzada metafórica por todas as mulheres injustiçadas ao redor do mundo; e muito disso só e possível na amizade construída na compreensão mútua que há entre as próprias mulheres e na ajuda que uma pode dar a outra.

Charlie DonelaEm Não Confie em Ninguém a paridade entre duas mulheres também é parte central do terceiro livro do autor ao nos apresentar Grace Sebold e Sidney Ryan, a primeira tinha um futuro promissor na medicina, a segunda é uma proeminente produtora de tv e documentarista em ascensão.

Grace é condenada pela morte do noivo em uma viagem e Sidney se lança na jornada em busca de provas que envolvem uma série de irregularidades no caso de Grace, desde a coleta de provas até os procedimentos de inquérito e o próprio julgamento em si.

Enquanto produz um documentário em tempo real sobre o caso Sebold, Sidney vai mergulhando na vida da garota, de sua família e amigos enquanto sua carreira alça voos que ela nunca imaginou.

Outra vez a perspectiva de duas mulheres e suas visões particulares de mundo, de si mesmas e das narrativas que contam é o ponto central da trama proposta por Donlea, onde passado e presente mais uma vez dão voltas entorno um do outro e mais uma vez duas mulheres precisam se compreender mutuamente para um bem maior.

Estabelecer personagens e depois entrelaça-los é um ponto que dispensa discussões qualitativas na obra de Charlie Donlea; o autor é um exímio narrador nesse sentido, tanto na criação quanto no desenvolvimento individual e coletivo de seus personagens.

O cenário personagem na narrativa de Charlie Donlea

Charlie Donlea tem grade apreciação por cidades pequenas, lugares discretos e paradisíacos. O autor parece querer equilibrar a violência crua dos crimes de seus livros com lugares bonitos, com belas praias ou rios exóticos e cercados de uma paz interrompida bruscamente pela perda, dor e destruição.

Em A Garota do Lago é a cidade de Summit Lake que tem sua calma sufocada pela morte de Becca Eckersley de forma abrupta e violenta. Summit Lake é quase uma terceira mulher dentro da narrativa do autor e isso se repete em Deixada Para Trás na cidade de Emerson Bay, também uma cidade bonita, com belas lagunas, lanchas e belos rapazes e garotas desfilando seus corpos bronzeados de um lado a outro.

E quando esses cenários tropicais não são o foco, as densas florestas tipicamente americanas entram em cena permitindo que olhos estranhos espreitam da sombra das árvores e aproveite a densidade da mata para se ocultar e ocultar lugares que contam uma parte tenebrosa da narrativa de Donlea.

Charlie Donela
Donlea no Brasil em virtude do lançamento do livro “Não Confie em Ninguém”

Já em Não Confie em Ninguém, Charlie Donlea deixa o conforto do interior americano e se lança para Sugar Beach na ilha de Santa Lúcia no Caribe Oriental para narrar mais uma estranha situação envolvendo uma morte cercada de mistério, controvérsias e vários possíveis culpados, mesmo que um bom número de evidências esteja apontando para Grace Sebold como a assassina de Julian Crist, seu noivo.

Dividindo espaço com Sugar Beach e várias locações perdidas pelo território americano, Sidney Ryan vasculha os esqueletos no armário do passado de Grace, seus amigos e familiares. E, assim como em A Garota do Lago, a investigação de Sidney faz com que seu drama pessoal se cruze com o de Grace da mesma forma que o drama de Kelsey se cruzou com o de Becca, quase como se Donlea quisesse fazer uma narrativa especular entre as duas obras.

Donlea não chega a dar contornos humanos ou psicologicamente humanizados aos seus cenários, mas as características de seu espaço narrativo são bem marcantes e fundamentais ao longo do trajeto narrativo, dando charme e identidade ao drama e a trama que nos entrega. Ao remover-nos dos grandes centros urbanos, ao nos privar das grandes cidades conhecidas amplamente por qualquer possível leitor, Donela opta por nos levar para cenários menores, mais intimistas e pessoais.

Também vale destacar que esses cenários tão comuns, acabam por se adaptar bem na mente de qualquer pessoa e acabam ganhando aquele ar de “universalidade” que existe no trivial, no comum, no íntimo do coletivo.

Charlie Donlea e o lugar do jovem em sua construção narrativa

Nos três livros do autor que a Faro Editorial publicou aqui é evidente a presença dos jovens adultos ou adolescentes em destaque nas narrativas.

Esses jovens personagens estão todos, quase invariavelmente, em fases de mudanças importantes no curso de suas vidas: estão terminando o high school (ensino médio americano), ou estão terminando a faculdade, descobrindo um grande amor, mudando de cidade ou emprego ou perdendo um ente querido de forma drástica e violenta.

Becca Eckersley e seus amigos estão prestes a se forma quando a vida da garota começa a mudar; sua morte chega pouco tempo depois disso e tudo desmorona ao redor dos que ficam… Nicole Cutty e Megan McDonald estavam às portas da festa de formatura do ensino médio e se preparando para encarar as mudanças típicas da cultura americana quando os jovens deixam o lar para ingressar na faculdade e no mundo; sequestradas de forma abrupta, subtraídas sem pista ou vestígio até que Megan retorna e Nicole não, e tudo muda ainda mais na vida dos que precisam lidar com a dúvida e o mistério.

Em Não Confie em Ninguém, Grace Sebold é uma aluna promissora da graduação, buscava uma pós-graduação para quando concluísse a faculdade, ao lado do noivo Julian Crist e alguns amigos, todos se preparavam para as mudanças após a conclusão do ensino superior, muitas já com planos traçados e malas quase prontas para encarar tais mudanças.

Mas a morte violenta de Julian em um país estrangeiro cercada por provas que apontavam para Grace fizeram dos planos da garota apenas um punhado de sonhos. Enquanto os amigos avançaram em seus planos, Grace estagnou nos dez anos que passou presa em Santa Lúcia.

Charlie DonelaCharlie Donlea parece ter um apresso meio sádico por estragar a vida de seus personagens em momentos crucias de mudança; quando as perspectivas lhes pareciam favoráveis e os novos rumos inevitáveis o autor atira sobre seus personagens tragédias irreparáveis, algumas deles vindas de suas próprias escolhas, outras impostas por terceiros.

Mas a meu ver é justamente essa interrupção abrupta que nos guia página após página na direção da tragédia que se abateu sobre esses jovens promissores e suas vidas divertidas; somos impelidos a descobrir quem e o porquê dessa interrupção a cada página de cada narrativa.

Os jovens protagonistas do autor são uma ferramenta cara em sua obra, acredito eu, por serem justamente elementos em transformação, capazes de se moldar, mudar e se reconstruir no caos de suas tragédias particulares. É como o recurso dos cenários em cidades pequenas: há no particular, no intimista e no particular um caráter de universalidade de perspectiva e entendimento. É fácil pensar que algumas dessas tragédias poderiam está apenas alguns passos de qualquer pessoa em qualquer lugar.

Afinal de contas, não fomos todos jovens? Todos cheios de sonhos e planos mudados ou perdidos ao longo dos passos e escolhas feitas ao longo de nossos próprios caminhos?

A Narrativa multifocal de Charlie Donlea

Apesar de ter uma trama central e uma direção a seguir entre um crime violento e o desbravar de suas particularidades e as motivações do assassino, Donlea nos apresenta muitos pontos de vista, muitos personagens coadjuvantes e, ao menos, dois tempos narrativos (“passado anterior ao crime” e “presente posterior ao crime”).

Entre esses dois momentos no tempo Donlea apresenta seu elenco e vai levando paralelamente passado e presente capítulo após capítulo até que ambos se encontram para atingir o clímax da revelação que tantos ansiávamos para atingir. Quando não são os dois tempos narrativos, são os pontos de vista alternados entre personagens diferentes sendo guiados na trama e em suas labirínticas estruturas.

A Garota do Lago Faro EditorialAlém das personagens protagonistas, o elenco de coadjuvantes também tem seu devido destaque apresentando pistas e informações que podem ou não nos apontar para a direção correta.

O interessante desse recurso multifocal narrativo é que Donlea não coloca nada de forma gratuita, nem mesmo quando sua intenção é desvia nossa atenção das surpresas narrativas, e acredite, elas são muitas. Cada foco, cada tempo narrativo trás sempre um enriquecimento à obra e seu significado

Charlie Donlea | Um lugar na minha, na sua, na nossa estante

De forma temática eu consideraria sim os três livros de Donlea uma espécie de “trilogia temática”. O excelente e sempre competente projeto editorial e gráfico da equipe da Faro Editorial reforçam essa sensação com as capas de cada livro que, além da similaridade visual dos projetos, reforçam também a perspectiva da figura feminina no centro de cada obra.

Dono de uma narrativa ágil, multifacetada e inteligente, Charlie Donlea é aquele escritor que vale a pena indicar para qualquer tipo de leitor: dos muito ávidos aos esporádicos que apenas buscam pela leitura instigante e divertida.

Charlie DonelaO conjunto da obra disponível hoje pela Faro Editoral nos mostra um projeto editorial corajoso e igualmente competente ao apostar tanto em tão pouco tempo em um escritor estreante. Da estreia de Garota do Lago em 2017 até o lançamento de Não Confie em Ninguém na ocasião da Bienal do Livro de 2018 que culminou com a vinda de Donlea para o Brasil, foram três livros em apenas dois anos; e três livros onde o leitor percebe o estilo do autor se ampliar, evoluir, mas sem perder nada de sua essência.

Em um época na qual se leva anos e anos para vermos autores terem seus lançamentos sendo mantidos no país, ter Donlea ganhando seu lugar ao sol no catálogo da Faro Editorial é um alento.

Se você ainda não se aventurou por Summit Lake, por Emerson Bay ou por Sugar Beach, então corra atrás do tempo perdido e mergulhe de cabeça nessas narrativas de Charlie Donlea, você não vai se arrepender.

Faro EditorialFique de olho nas próximas partes de nosso especial com o autor, onde cada livro aqui mencionado é detalhado em sua própria resenha, destacando e aprofundando o estilo e as características da escrita de Donlea em cada obra.

Sobre o Autor

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Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.

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