É pouco provável que você não conheça A Máquina do Tempo, do célebre escritor inglês H.G. Wells, a obra integra os pilares e alicerces das obras de formação do que viria a ser, em algumas décadas, a Ficção Científica.
Lançado em 1895, o primeiro romance de Wells antecede a própria fundação do gênero de Ficção Científica como ele ficou conhecido após as primeiras décadas do século XX, especificamente quando o termo fora cunhado por Hugo Gernsback.
Mas independente das formalidades e atribuições cronológicas, A Máquina do Tempo se tornou um dos grandes clássicos do gênero e seu autor um dos nomes eternos de referência para o mesmo.
Considerado de forma tácita pelo establishment literário como o primeiro livro de Sci-Fi a propor um “veículo” capaz de viajar pelo tecido do tempo, a obra de Wells — seu primeiro romance, diga-se — pontuou as idas e vindas pelo passado, presente e futuro como um dos temas mais caros aos criadores de histórias que vieram depois, cimentando uma estrada fértil, inventiva e repleta de possibilidades para a narrativa de aventura.
Enquanto se especulou muito sobre as remotas ilhas ocultas dos mapas, enquanto se viajava pelas profundezas dos oceanos, enquanto se visitava os mistérios das vastidões geladas ou se aventurava-se nas entranhas do planeta Terra em busca de aventuras incríveis, Wells olhou para o o futuro e nele vislumbrou um pouco de todas essas coisas para construir sua narrativa.
Com a “carta náutica” da viagem no tempo pronta, não tardou para o tema e suas infinitas possibilidades se tornarem preciosas, constantes e aprimorados pelos escritores de Sci-Fi.
Depois de Wells muitos foram os grande nomes que se aventuraram pelas maravilhas de se romper as barreiras intransponíveis do tempo.
Seja de modo mais científico e próximo da realidade pautada na ciência, seja de modo mais fantasioso e livre como ao modo de Borges, por exemplo, a viagem no tempo proposta por Wells se tornou uma constante na cultura pop que se ergueu a partir dos primeiros anos do século XX.
Ao lado de A Ilha do Dr. Moreu (veja mais aqui), de A Guerra dos Mundos e outros tantos clássicos, A Máquina do Tempo pontuou não só um tema importante para a fundação da Sci-Fi, trouxe também abordagens como a análise crítica da sociedade humana pelo prisma da ficção ao se debruçar, mesmo que de forma breve, sobre aspectos, implicações e desdobramentos de ordem social, cultural, política e econômica.
Apesar de ter uma perspectiva mais fantasiosa e de deslumbramento que uma abordagem científica da viagem temporal, Wells não se furtou de apresentar em seu texto o fato de que o tempo é, ou ao menos poderia ser, uma grandeza matemática, mensurável, delimitável e que, identificados os pontos certos, a quarta dimensão poderia ser “fatia” por um veículo operado por uma viajante.
E, com isso, abriu-se as portas para uma nova maneira de se pensar grandes viagens, aventuras e mistérios que poderiam estar aqui mesmo em nosso mundo, estando apenas em outras épocas de nossa história.
A Máquina do Tempo | Uma jornada para o ano 802.701
Em A Máquina do Tempo começamos nossa jornada ao lado de proeminentes nomes das letras, do mercado editorial, da medicina, do jornalismo etc; todos amigos do homem apenas identificado como o Viajante no Tempo, tão brilhante, enigmático e inteligente quanto seus convidados, este distinto cavalheiro é o idealizador e construtor da Máquina do Tempo.
Após explicar de forma relativamente rápida os princípios que nortearam sua experiência e a maneira como o tempo é “atravessado” por seu brilhante dispositivo, o Viajante no Tempo realiza uma rápida demonstração prática de sua máquina através de uma versão miniaturizada do dispositivo, nada suficiente para que seus convidados realmente se convençam de sua descoberta, mas o suficiente para voltarem uma semana depois para vislumbrar a verdadeira máquina realizar um salto temporal.
Passado-se esse ínterim, os visitantes retornam à casa do Viajante no Tempo para um jantar e claro, para apreciar a invenção de seu ilustre anfitrião em plenitude dessa vez.
Ironicamente algo deu errado e o que os convidados testemunham é a chegada do Viajante no Tempo em roupas esfarrapadas, mais magro, abatido e faminto. Alarmados, todos acreditam até que o ilustre cavalheiro tenha sido vítima de um ataque de bandidos…
O que se segue são algumas explicações simplórias e o jantar, com a promessa de que toda aquela situação será esclarecida com requinte e detalhes num dos relatos mais brilhantes, incríveis e assombrosos já feitos na literatura de Ficção Científica.
Após saciar sua imensa fome, o Viajante no Tempo começa a relatar sua empolgante viagem pelo tempo em seu lindo e elegante veículo, por vezes mais parecido com uma obra de arte do que com uma máquina, dado seu apuro estético que podemos inferir, aqui e ali, por alguns detalhes dado pelo protagonista ao longo da obra.
Foram aproximadamente 7 ou 8 dias, pela perspectiva interna do Viajante no Tempo, em que o personagem esteve no distante ano de 802.701, ano atingido quase que acidentalmente após o operador se empolgar com a capacidade de sua invenção em atravessar o tecido temporal.
Vale frisar que a máquina do tempo é estritamente um aparato que se “desloca” apenas no tempo, permanecendo exatamente no mesmo local de onde partira, “ressurgindo” de forma palpável apenas no dia, mês e ano acertados em seus mostradores.
Neste longínquo ano nosso protagonista se depara com um mundo completamente diferente do que havia deixado em sua época normal. Tão diferente e ao mesmo tempo tão similar em alguns aspectos a ponto de, apenas com uma passada d’olhos, poder se reconhecer paisagens e lugares de forma prática para a condução narrativa.
Aqui mais uma vez o leitor pode perceber que a história de Wells é construída para o deslumbramento de seu personagem e para a condução de sua história.
Vale frisar aqui que não podemos esquecer que se trata, antes de tudo, de uma obra de estreia, então temos em mãos um texto que carrega em si o peso da responsabilidade desse debute, os pormenores do romance de formação e um grande exercício criativo por parte do autor, ou seja, temos em mãos uma narrativa que funciona prioritariamente em função de seu conceito central: o homem se deparando com um futuro assombrosamente estranho.
Aqui Wells se preocupa mais com os aspectos fantasiosos do que com qualquer perspectiva de uma explicação realmente científica da coisa toda, desde a configuração do espaço físico do ano de 802.701, das formas de vida, passando pela maneira como sua máquina do tempo opera, por exemplo (você vai perceber que em momento algum há sequer uma única menção sobre a fonte de energia da máquina).
A meu ver, o que Wells constrói aqui é uma grande metáfora, uma maravilhosa alegoria, um crítica fictícia ao homem, à nossa sociedade como um todo, ao desenvolvimento tecnológico, social, econômico e cultural de nosso futuro.
Para empreender tal façanha, o autor recorre ao contexto que criou para nosso distante futuro, colocando diante do Viajante no Tempo as raças completamente distintas e opostas dos Eloi e dos Morlocks. Enquanto os primeiros são bonitos, frágeis, graciosos, inocentes e prestativos, os segundos são ferozes, bestiais, bizarros e em certa medida, muito perigosos.
Enquanto os Eloi andam eretos e vivem na superfície se alimentando de frutas, brincando, dançando, vestindo trajes elaborados, se ornando com belas e estranhas flores, os Morlocks andam curvados, quase como símios, tem a pele pálida e grandes olhos brilhantes, habitam os subterrâneos e percorrem imensos túneis que passam por baixo do solo; a única coisa em comum entre os dois povos é o tamanho diminuto, pouco maior que o de uma criança humana normal.
Diante desses dois povos é que nosso protagonista começa uma série de reflexões e análises sobre o comportamento de cada uma dessas sociedades, sua alimentação, a maneira como lidam com o ambiente e como se relacionam entre si.
Sua principal fonte de espanto é perceber que as duas raças são o que restou dos humanos que, em sua perspectiva, já tiveram sua idade áurea e agora definhavam nesses dois povos sem criatividade, sem tecnologia alguma, sem motivações além da mera sobrevivência diária.
Wells constrói um futuro novo e ao mesmo tempo inovador, aqui não há lugar para um bela utopia futurista, cheia de servos robôs de aspecto semi-vitoriano, nem grandes indústrias automatizadas, carros voadores, cidades nas nuvens envoltas em grandes cúpulas de vidro. Aqui só há duas raças distintas com um leve parentesco com a raça do Viajante no Tempo e que se deterioram lenta e inexoravelmente.
Mas as preocupações do protagonista — e de seu criador — vão além disso quando o Viajante no Tempo percebe que sua máquina fora levada do local onde havia “aterrisado” no futuro.
Sem saber como lidar com a situação, cresce em seu íntimo o medo de ficar preso para sempre numa época completamente diferente de tudo que já havia visto ou imaginado.
Diante dessa possibilidade o personagem precisa entender como lidar tanto com os simpáticos Eloi — cuja preocupação principal é passar bem seus dias e dormir em segurança de noite — ,quanto com os arredios Morlocks e seus imensos olhos sempre a espreita na escuridão das quase onipresentes florestas que agora tomam conta da paisagem de nosso mundo.
Ao menos do mundo que o protagonista consegue alcançar em sua viagem; lembre-se que a Máquina do Tempo não se deslocou no espaço, então a área coberta pelo protagonista da obra não é muito grande em termos de espaço físico percorrido.
A Máquina do Tempo | Um futuro desolador para a aurora da raça humana
O cenário pintado por Wells é um misto de maravilhas e destruição, espanto e abandono, evolução e degradação. Ao contrário de visões utópicas de nosso distante futuro, o que o autor nos propõe é uma perspectiva de estagnação, fracasso e consequente involução, todos trazidos após uma era áurea para nossa espécie, onde os avanços tecnológicos nos tornaram fracos, inaptos e despreparados.
Tudo que houve de melhor antes do ano 802.701 está agora soterrado em algum lugar, aqui e ali construções colossais resistem às intempéries e servem como abrigo para os Eloi, outras formas de vida menores como animais de estimação já foram há muito extintas e a vegetação é quase alienígena, lembrando bem pouco a grande variedade do século deixado pelo Viajante no Tempo.
O habitat dos Morlocks não é menos intrigante: a cadeia de túneis subterrâneos que lhes serve de lar é um imenso labirinto, com “bocas” de túneis ocasionalmente espalhados por toda a paisagem e por onde as pequenas e pálidas criaturas saem para fazer suas incursões noturnas.
Não há dados históricos, nem registros escritos catalogados, pois a escrita também já não existe mais, não há máquinas para ativar ou reaproveitar, até mesmo o fogo é algo estranho para os habitantes do futuro.
O futuro que Wells nos mostra é na verdade uma volta ao nosso passado primitivo, uma involução, um retrocesso sem precedentes até então mostrado em uma obra de ficção, nossa evolução tecnológica criou seres acomodados, tranquilos, pacíficos e sem predadores naturais para lhes instigar os instintos de sobrevivência e criatividade.
Wells, de posse do que havia sido escrito e publicado em sua época, redigiu não só uma bela obra fictícia e fantasiosa, o autor nos deixou um legado de reflexão, de análise e ponderamento sobre nossos rumos acima e abaixo da terra.
Porém, mesmo sendo escrito na forma de relato pela perspectiva do Viajante no Tempo, Wells nos brinda com uma bela prosa e texto escrito com o que há de melhor na forma e no conteúdo, com momentos de encantamento, espanto, assombro e ternura dentro de sua narrativa.
É pouco provável, por exemplo, que não simpatizemos com a amizade criada entre o protagonista e a Eloi chamada de Weena, com quem o mesmo cria laços de amizade, afeição e carinho; laços esses que estranhamento foram adaptados para outras obras como “interesse amoroso” entre os personagens, equivoco grosseiro e até de mal gosto, uma vez que os Eloi se comportavam praticamente como crianças.
Na obra há espaço para essa amizade, para a descoberta, para o medo, para a dúvida e o encantamento das possibilidades vistas pelo Viajante no Tempo. Talvez algum leitor mais desavisado possa ter embarcado nessa aventura esperando encontrar ação desenfreada, paradoxos temporais, uma revolução dos Eloi contra os Morlocks e outras correrias típicos de muitas obras de Sci-Fi e dos filmes que as adaptam, mas aqui o que temos é mais voltado para uma narrativa de apreciação e descobrimento, um texto contemplativo mesmo, então se você não está disposto a embarcar nas elucubrações e análises do protagonista (uma clara síntese e alusão ao próprio Wells, a meu ver), A Máquina do Tempo não é uma leitra para você.
Ironicamente, A Máquina do Tempo é um livro pequeno em número de páginas (a edição que li, da Alfaguara, tem exatas 150 páginas), mas gigantesco em conteúdo e ideias, não por acaso integra sempre as listas de obras essenciais tanto dentro quanto fora do gênero Sci-Fi.
Inventivo, original e ousado não só para sua época mas para qualquer época, A Máquina do Tempo é um livro que merece espaço em qualquer estante que se preze e merece facilmente também toda a celebração que se faz em torno dele. Longe de ser atemporal — o risco que toda obra de ficção sempre corre — o livro de estreia de Wells é, acima de tudo, uma celebração à criatividade, ao novo, ao moderno, ao incógnito amanhã que nos aguarda.
Lançado perto de uma virada de século, A Máquina do Tempo é uma celebração aos avanços tecnológicos e científicos da época, é um olhar para o indivíduo que espelha não só a si mesmo, mas espalha toda sua espécie, que se maravilha e se desespera ao contemplar as possibilidades diante de si e de perceber que tanto o indivíduo quanto o coletivo podem simplesmente não estar mais aqui enquanto nosso mundo segue adiante sem se importar com nossos sucessos e fracasso em perdurar.
Em A Guerra dos Mundos o escritor H.G. Wells olhou para Marte e lá viu enormes canhões disparando Tripods para invadir a Terra, em A Ilha do Dr. Moreu o mesmo Wells olhou para o médico que queria moldar as formas de vida como se fosse um deus, o mesmo Wells contemplou o futuro com sua Máquina do Tempo, lá ele percebeu que em algum momento qualquer no tempo nenhum de nós estará mais por aqui… e ninguém sentirá nossa falta.
Clássico inconteste, A Máquina do Tempo tem uma dezena de edições lançadas aqui no país (a obra de Wells já está em domínio público por aqui), à disposição dos novos e velhos leitores, basta escolher sua editora favorita e seu acabamento de preferência e viajar à vontade (de imediato me vem logo à memória as edições da Editora Suma, da Zahar e a já citada Alfaguara).
O livro também conta duas adaptações para cinema, a primeira no ano de 1960 e a segunda no ano de 2002. Particularmente a versão da máquina do tempo do primeiro filme é muito similar à maneira como eu imaginava o dispositivo do livro de Wells, um misto de cadeira, trenó, trono e mecanismos que lembravam muito algo steampunk.
Coincidentemente o leitor pode apreciar um pouco da estética dessa versão da máquina do tempo no episódio intitulado The Nerdvana Annihilation (o 14º da primeira temporada) do famoso SitCom americano The Big Bang Theory, no qual o grupo de amigos adquire uma das réplicas em tamanho real da máquina usada nas filmagens do longo de 1960.
Vale e muito a homenagem ao filme e, claro, à grande influência de Wells à cultura pop de modo geral.
A Máquina do Tempo, de H.G. Wells
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Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.