“Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem” de Pénélope Bagieu, mais do que uma HQ para sua estante, uma lição de História feminista.
O que a rapper, a rock star, a ativista, a intérprete dos animais, a atleta, a jornalista, a vulcanóloga, a advogada, a atriz inventora, a miniaturista do crime e a astronauta tem em comum para além do fato óbvio de serem mulheres?
A resposta é simples: todas elas foram OUSADAS… ousaram desafiar as convenções sociais, políticas, econômicas e culturais do mundo eu seu redor. Ousaram desconstruir a perspectiva da mulher como sexo frágil, ousaram destroçar a ideia de que há profissões de homens e de mulheres, ousaram pôr em xeque os limites do dito “sexo frágil” e mostraram que de frágil uma mulher não tem absolutamente nada.
Elas ousaram, e isso foi suficiente para mudar o mundo de tantas formas e modos diferentes que é surpreendente notar que ainda são nomes, rostos e resultados tão desconhecidos do grande público e pasmem, dos anais da história humana.
Mas aos poucos, mesmo depois de tantas décadas, isso vem mudando ainda que lentamente, — é preciso admitir com muita vergonha essa dura verdade — ainda que de forma reativa e rompendo barreiras que já deveriam ter sido desfeitas depois de tantos feitos e conquistas femininas ao longo dessas décadas todas.
Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem vem dar sequência ao belo trabalho iniciado por Pénélope Bagieu no volume 1 lançado aqui pela Editora Nemo em 2018 e que vem engrossar a quantidade de obras cuja autoria feminina é essencial para a condução do conteúdo.
Com certeza absoluta Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem é uma obra que, para falar da presença e revolução da figura feminina na sociedade, prescinde exatamente da visão da própria mulher. Pénélope Bagieu é dona de uma sensibilidade artística ímpar e de um traço que equilibra fluidez, humor e uma expressividade indispensável para cada história contida na obra.
Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem é uma deliciosa coletânea de biografias resumidas no que há de melhor nas HQs modernas: texto inteligente, arte dinâmica, conteúdo relevante não só para os fãs de HQs, mas para qualquer pessoa interessada em História, sobretudo a História que muitas das vezes nos é ocultada pelos ditos canais oficiais.
Pénélope Bagieu nos presenteia com uma belíssima pesquisa histórica que, ainda que estejam apresentada de forma resumida, enriquece nossa percepção das muitas batalhas femininas e das muitas mulheres que as protagonizaram e aqui o termo é essencial para nós leitores e leitoras: a figura feminina em destaque, seus desafios superados e suas marcas deixadas como legado.
Sem medo de nos apresentar a sensibilidade do sofrimento e a emoção das conquistas, Pénélope Bagieu é protagonista de sua própria obra: cada quadro é desenhado em poucos traços, em pouco espaço, mas neles está contida cada parte necessária para compor os mosaicos de cada personalidade feminina escolhida para esse Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem.
É perceptível o cuidado com que cada pequeno rostinho, cada postura, gesto, roupa, adereço, momento de dor, sorriso ou indignação é posto em cena.
Não foram poucos os momentos que eu virava as páginas apenas depois de várias e várias idas e vindas prescutando, remexendo, revirando, vasculhando infinitamente cada quadro para rever naqueles rostinhos tão expressivos o carinho e o cuidado com que a artista os colocou ali de forma tão espontânea e ao mesmo tempo calculada para, junto com os balões de fala, me guiar por fatos, situações e momentos cruciais de histórias de vida tão densas e necessárias.
Bagieu é uma artista com pleno e total domínio da forma e do conteúdo de uma HQ, não só na arte do desenho que tem uma fluidez lânguida, cadenciada, conectada de forma harmônica nos 9 quadros padrões que a artista utiliza por página, mas também nas cores vivas, fortes, vibrantes de sua paleta, tornando cada quadro único um tipo de fotograma autônomo e completo em si mesmo, com sua própria microhistória agindo como célula de um organismo maior.
Tudo na obra se organiza, se conecta e funciona de forma perfeita, mesmo que cada história tenha sua própria época e características a ser evidenciada, Bagieu mantém seu senso de unidade e uniformidade de estilo, cores e cuidado com os detalhes.
E claro, há os painéis de página dupla que encerram cada capítulo com uma belíssima cena em destaque máximo e grande profusão de detalhes, cores e formas, isso quando a artista não resolve nos surpreender com um belo painel em preto e branco onde salto aos olhos seu belíssimo traçado de cortorno.
Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem é uma HQ que sabe dosar muitíssimo bem arte, informação, e entretenimento, lembrando-nos a todo instante que esse tripé é algo mais do que necessário para a construção de uma nova perspectiva sobre a presença da mulher não só na criação das HQs, mas dentro de nossa sociedade de modo geral.
Acredito que obras como Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem são mais do que necessárias, são obras fundamentais para a disseminação de informações e conhecimentos muitas das vezes negado aos leitores e leitoras por anos e anos dentro de publicações ditas oficiais.
Praticamente todas as histórias da HQ me trouxeram conhecimento que até então jamais havia cogitado existir sobre a atuação da mulher para que certas transformações fossem realizadas.
Havia nomes que sim, eu conhecia de longa data, mas mesmo nesses casos havia algo “novo” a ser aprendido e compreendido. Sem falar nas inúmeras situações “menores” necessárias para a culminância de alguma transformação real no status quo da presença da mulher em nossa sociedade.
Ironicamente, a maioria desses pequenos fatos essenciais sempre nos fora negada de algum jeito, fazendo parecer que mudanças necessárias e importantes houvessem simplesmente começado “sem mais nem menos” aqui e acolá, quando na verdade suas sementes foram plantadas em momentos diversos, separados por anos, décadas, por países inteiros e oceanos caudalosos sim, mas tudo fruto de uma único fator: a supressão da figura da mulher ao longo de nossa trajetória histórica como um todo.
Não importa o local, a condição social, a constituição familiar, todas as mulheres responsáveis por alguma transformação social foram vítimas de algum tipo de opressão masculina, seja no lar, no trabalho, na escola, em algum recanto de convívio social em que todas deveriam apenas “fazer coisa de mulher”.
Não precisava de nenhum motivante a mais: ser tratada como inferior, ter seu corpo como uma posse alheia, não poder se responsabilizar pelo seu sustento e de seus filhos? É necessário algo mais para uma revolta?
Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem é uma obra que merece lugar em qualquer coleção, não só pelo belíssimo trabalho editorial da Editora Nemo, mas sobretudo pela importância de seu conteúdo e da relevância do mesmo para os tempos que seguem.
Passado-se muitas décadas desde as primeiras transformações em nossa sociedade no que tange a figura feminina, é ainda alarmante notar o número absurdo de leitores de HQs extremamente machistas e retrógrados quando o tema é protagonismo da mulher; sem esquecer da total e completa falta de conhecimento real do que realmente é Feminismo e seus objetivos. Fundamental e necessária é até pouco…
Ao lado da rapper, da rock star, da ativista, da intérprete dos animais, da atleta, da jornalista, da vulcanóloga, da advogada, da atriz inventora, da miniaturista do crime e da astronauta eu coloco sem medo algum a quadrinhista que conhece o poder do seu traço e a importância de sua obra.
Obrigado Pénélope Bagieu, pelas palavras que ensinam e pelo traço que conduz… Mais do que nos mostrar mulheres que “só fazem o que querem”, você nos mostrou mulheres que fizeram o que precisava ser feito, não importa a que custo.
Ousadas Vol. 2 Mulheres Que Só Fazem O Que Querem foi a HQ vencedora do Prêmio Eisner de 2019.
Ousadas Vol. 2 | A Autora
Pénélope Bagieu nasceu em Paris, em 1982. Estudou cinema de animação na Ensad e fez uma passagem pela Central Saint Martins de Londres.
De volta a Paris, cria em 2007 o Ma vie est tout à fait fascinante, um blog ilustrado no qual expõe sua vida cotidiana com um humor e uma graça que acertam no alvo. Com a publicação do blog em forma de livro, seu sucesso se expande para as livrarias.
Hoje, Pénélope faz sucesso por todo o mundo com diversas publicações, entre elas a graphic novel Uma morte horrível, publicada no Brasil pela Nemo em 2016. A série Ousadas já vendeu mais de 200.000 exemplares apenas na França.
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Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.