Existe um Brasil diferente do Brasil que nós, pessoas normais, conhecemos e ele é muito, muito maior e muito mais diversificado do que imagina nossa vã percepção. Em O Tratado dos Pés Descalços – Pindorama Livro 1 do autor Guilherme Viana, somos levados para esse outro Brasil, que fica bem aqui mesmo, porém oculto de nós pelo efeito dos poderes dos povos mágicos que habitam nossas florestas.
André, um jovem adolescente que habita aquela zona cinzenta entre o fim da infância e começo da adolescência é nosso protagonista nessa aventura cheia de descobertas, mistérios, magia, fantasia e bom humor.
André, com seus 12 anos de idade, é um garoto esperto, adora postar fotos em redes sociais, quer um PC Gamer bem turbinado e claro, quer fazer muitos amigos na nova escola. Mas o garoto sente muitos receios por conta de sua condição: negro, pobre e sem a perna direta.
Sua deficiência nunca lhe foi um impeditivo, ele sabe se divertir, brincar e se vira muito bem na ausência do pai que, desde o nascimento, o cria sozinho devido ao falecimento de sua mãe, Anastácia, no parto do garoto.
Mas as coisas não são tão simples assim na nova escola. Já no primeiro dia de aula André precisa lidar com as gracinhas de Jorge, o típico garoto-problema e encrenqueiro.
Gracinhas na verdade é um eufemismo: o que Jorge faz é Bullying da pior e mais cruel espécie. Jorge faz troça da deficiência de André, de sua posição social, de sua cor de pele… Tudo é um motivo para implicar com André.
Na verdade, dizer que o que Jorge faz é “apenas” Bullying ainda é eufemismo, é preconceito mesmo e externalizado da forma mais covarde que há: a tal “brincadeira inocente” daqueles que acham que é “só uma piada”, “é brincadeirinha” e está tudo bem, que reclamar disso é só chatice “politicamente correta”
No meio do fogo cruzado entre os dois garotos há a professora Monã com quem André rapidamente se identifica, já que ela é negra também. Mas não apenas por isso, a jovem professora sabe como lidar tanto com garotos arredios como Jorge quanto com garotos como André que, mesmo sendo portador de uma deficiência, é tratado de forma natural, espontânea e não como um “mero coitadinho digno de pena”.
Não tarda para André confrontar Jorge sozinho. Sem se deixar abalar nem intimidar pelo garoto encrenqueiro, ambos tem seu acerto de contas já na primeira aula de Educação Física do sisudo professor Iraci — que André apenas assiste de longe, já que não pode praticar esportes —; o embate entre ambos atinge seu ápice quando o garoto deficiente acerta um chute fortíssimo no peito de Jorge, arremessando-o para longe.
CALMA! Você leu certo: André, com apenas uma perna só acerta um potente chute em Jorge… Como ele fez isso? De onde veio a força para saltar com uma única perna e ao mesmo tempo desferir um poderoso chute? Pois é, assim começam as aventuras e problemas na vida de André… As respostas para essas questões são apenas o ponto de partida.
O Tratado dos Pés Descalços | Para além das terras dos Kari
Inadvertidamente, André, que sempre viveu como um garoto deficiente tratado com condescendência pelos outros, rompeu o Tratado dos pés Descalços, um antigo acordo feito entre os muitos povos mágicos de não usar suas habilidades e poderes entres os humanos normais, chamados de Kari por esses seres fantásticos.
Desconhecendo totalmente a existência desse tratado e o fato de que todas as lendas e mitos de nosso folclore existem de verdade, André é tragado pela disputa entre os Sacis, seu povo de origem, e os Caurupiras que vieram em seu encalço pelo rompimento do tratado de séculos atrás.
Ao expor sua habilidade de controlar os ventos para potencializar sua agilidade, força e locomoção, André expôs diante de várias testemunhas na escola uma habilidade ímpar do povo dos Sacis que não deveria ser utilizada além das fronteiras das terras mágicas com Pindorama, nome dado aos territórios habitados pelos Kari.
Mas o julgamento que aguarda por André não parece nada justo, uma vez que a rivalidade entre o povo dos Sacis e dos Curupira é antiga e o garoto sequer tinha conhecimento de suas verdadeiras origens ou do tratado que rege os povos mágicos. Então Monã entre em cena mais uma vez e revela-se uma guerreira embaixadora de seu povo entre os Kari; é de sua responsabilidade revelar a verdade e trazer André em segurança para seu verdadeiro povo.
E se você acha que eu falei demais e revelei coisas demais, não se preocupe, isso são só algumas linhas gerais dos primeiros capítulos do livro, todos os mistérios verdadeiros dessa ótima obra estão ainda ocultos pelas copas das árvores, pelas sombras densas da flores, pelo som das folhas secas partindo sobre o peso de pés descalços que correm velozmente floresta adentro.
O Tratado dos Pés Descalços | Fantasia e Folclore nas terras tupiniquins
O Tratado dos Pés Descalços – Pindorama Livro 1 é uma obra interessantíssima, pois vai de encontro a duas coisas que tem feito a alegria dos jovens leitores: fantasia e aventura. Os fãs de personagens como Harry Potter e Percy Jackson tem aqui uma grande oportunidade de manter-se ligados aos jovens aventureiros que se descobrem portadores de grandes poderes e das responsabilidades que deles advém (calma Peter Parker, dessa vez não é com você).
André se descobre um Saci, não “O Saci“, mas um de muitos que que integra um povo cuja grande característica é a ausência da perna direita e a cor da pela, somado-se a esses aspectos o fato de que os Sacis são realmente mágicos numa amplo sentido.
Não só eles, todos os povos da floresta são detentores de grandes habilidades e poderes: curupiras, botos, iaras, capelobos… todos são responsáveis pela proteção das florestas através de suas habilidades; o que não significa que estejam em total harmonia entre si, seus pequenos conflitos e interesses afloram o tempo todo.
Vivendo temporariamente em Bambuzal, a comunidade dos Sacis no interior da floresta da Tijuca, André aprende muito sobre seu povo e também sobre sua origem (essa parte eu deixo para vocês durante a leitura da obra), aprende também sobre a relação entre os muitos povos mágicos e a relação destes para com os Kari, os humanos normais.
André também aprende sobre Itupoeira, a arte de combate e proteção de seu povo e de como é intrínseca a relação dessa arte com seu modo de vida e o vento.
Mas nem tudo é descoberta pacífica e aprendizado passivo. André ainda está sobre a quebra do tratado que fora firmado séculos e séculos antes de seu nascimento. Aliado a isso um outro problema começa a se revelar com o reaparecimento da Mula Sem Cabeça que pressagia a chegada (ou retorno?) de um mal poderoso e terrível tanto para os povos mágicos quanto para os Kari.
E assim André embarca numa jornada por descobrimento, entendimento, aceitação, respeito e amizades que jamais teve a oportunidade de conquistar entre os humanos. Ao lado da jovem orgulhosa saci Dandara e do tímido menino curupira Cuã, André vai mergulhando fundo nas fronteiras entre mundos tão diferentes entre si e ao mesmo tempo tão interligados.
Guilherme Viana é um autor muito versátil na narrativa sabendo dosar tanto o desenvolvimento de seus personagens quanto sua revisão e ampliação de nossos mitos e folclores. Suas ideias são consistentes e sua narrativa tem ritmo de cadenciado, alternando cada ação com sua consequência sem perder de vista o fato de que temos uma trama maior se desenrolando a partir de uma perspectiva menor que é a do grupo do grupo composto por André e seus dois novos amigos.
Viana utiliza bem as características de cada personagem folclórico para tornar uma povo sem se deixar cair nos clichês de que esses seres são apenas criaturas brincalhonas que fazem travessuras bobas pregando peças nos humanos. Aqui cada povo tem suas agendas e planos, bem como qualidades ampliadas para servir de elemento identificador maior: os sacis realmente usam um gorro vermelho, mas apenas seus batedores; os curupiras tem a pela esverdeada e os cabelos se tornam alaranjados quando em chamas na hora que utilizam suas habilidades dominadas a peso de uma rígida hierarquia que lhes impõe pesadas lições; as Iaras são belas mulheres de olhares misteriosos e cheios de encanto; os botos são elegantes e seus chapéus também são identificadores de seus batedores que transitam entre os Kari; os capelobos são arredios, selvagens, ferozes e indomáveis.
Apesar de focar essencialmente nos sacis e nos curupiras como povos neste primeiro livro, Viana nos deixa antever toda a riqueza de suas ideias para as demais lendas, inclusive reservando espaço em sua narrativa para outros seres mágicos cujas origens flertam com as “lendas urbanas”.
Mas a magia mesmo acontece com a trama que o escritor desenvolve para nos enredar. André e seus amigos embarcam numa aventura que alterna perigos, bom-humor, aprendizado, aceitação e superação. Mais do que nos entregar um livro de aventura juvenil com ação e lutas, Viana nos entrega uma bela reflexão sobre identidade, amizade, cultura, respeito e aceitação; tudo isso sem precisar cair na pieguice ou na solução simplória de reduzir nosso folclore e seus conceitos a um punhado de criaturas bobas e atrapalhadas.
É importante frisar que O Tratado dos Pés Descalços – Pindorama Livro 1 é uma leitura inteligente independente de seu público alvo, sua construção narrativa lembra muito jogos de videogame e quadrinhos de diversos gêneros, o que torna a obra prato cheio para leitores de qualquer idade.
Viana criou um universo coeso, sem precisar recorrer a estrangeirismos cafonas e nem a regionalismos piegas, entregando-nos diversão, reflexão e originalidade em cima de nossa própria cultura, isso por si só já é mérito de sobra. Não podemos esquecer a importância do trabalho da Skull Editora em trazer à luz uma obra com essas características tão emblemáticas que não só valorizam como também resgatam elementos culturais tão ricos e instigantes, mostrando que nossa cultura e nossas lendas não deixam nada a desejar para o que há em outros países.
O Tratado dos Pés Descalços – Pindorama Livro 1 é uma ótima introdução para um universo maior e que já deixa abertas as portas para adentrarmos em mais aventuras ao lado de uma revisão consistente que alterna originalidade com tradição para criar algo novo e, ao mesmo tempo, com aquela cara de “velho conhecido”. O livro, originalmente lançado em 2018, já conta com duas continuações (O Segredo do Rio Amazonas e O Reliquista das Clareiras, respectivamente livro 2 e 3).
Dica de livros no mesmo tema
Caso você tenha gostado da proposta do livro, da temática dele ou se você simplesmente quer ver mais autores nacionais escrevendo com base em nossos mitos, lendas e folclore, segue abaixo duas sagas que tem tudo para agradar você, leitor.
Trilogia “Tibor Lobato”, por Gustavo Rosseb, disponível pela Editora Jangada
Trilogia “O Legado Folclórico, por Felipe Castilho, disponível pela Editora Gutenberg
O Tratado dos Pés Descalços | Sinopse
André é um menino brasileiro que sempre teve uma vida complicada. Em seus doze anos de idade, sempre foi tratado com desprezo, ou excesso de cuidado, e tudo isso porque nasceu sem uma das pernas. Seu pai se esforçava ao máximo para provar que ele poderia ser tão feliz quanto qualquer jovem de sua idade.
As coisas começaram a mudar após André ter aulas de folclore com a professora Monã. Ele acabou descobrindo que tudo era real: os Curupiras, a Mula-sem-cabeça e muitos mais. André descobriu, também, o principal: ele é um Saci, um ser mágico capaz de manipular os ventos.
O garoto então parte para uma aventura por um Brasil que ele não conhece, acaba fazendo novos amigos e se deparando com lendas vivas e criaturas aterradoras. Nessa aventura, algumas coisas sinistras têm acontecido nas florestas… E André acaba envolvido em toda a confusão.
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- Autor: Guilherme Viana
- Páginas: 160
- Formato: 16×23
- Ano: 2018
- Preço: 29,90
- ISBN: 9788553037117
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Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.