Thi Bui e sua belíssima obra, O Melhor que Podíamos Fazer vem engrossar a já bem consistente fileira de obras gráficas feitas com pedaços de vida pessoal, história familiar e percepção de mundo se entrelaçando e se misturando constantemente com a história do de uma cidade, de um país, do mundo.
Normalmente quando resenho uma obra me atenho muito ao que a obra tem a dizer por si mesma eu sua estrutura, seja somente texto ou texto-imagem no caso de HQs, mas Thi Bui e O Melhor que Podíamos Fazer focos que se mesclam com facilidade, uma vez que a obra em questão é uma transposição para o formato de quadrinhos dos registros da história oral da família da artista desde sua fuga do Vietnã, passando por uma jornada até o território americano e sua vida atual por lá.
Thi Bui nasceu em Saigon, três meses antes da queda da cidade durante a Guerra do Vietnã. A artista e sua família fizeram parte da onda de “botes” do sudeste da Ásia que se lançaram em fuga após a vitória do Vietnã do Norte (capital Hanói; apoiado pela União Soviética) sobre o Vietnã do Sul (capital Saigon; apoiado pelos Estados Unidos).
Parece relativamente simples pensar a história de Thi Bui e sua família nesses termos. Poderia ser uma história curta, mas o processo de estruturação de sua narrativa vai para além do relato seco da História como área de conhecimento, aqui a artista eleva sua qualificação tanto na escrita quanto na imagem: um texto forte apoiado numa arte simples, porém forte, um tanto suja e muito, muito expressiva.
Ao conduzir-nos pelos meandros da memória de seus pais e da história do Vietnã ainda enquanto colônia francesa no conjunto chamado Indochina (colônia composta pelos países Vietnã, Laos e Camboja), a artista alterna a cronologia do tempo, avança para momentos no presente da construção da HQ, volta até a infância de seu pai, vislumbra pelas memórias da mãe a perda de duas crianças antes de Thi Bui, a chegada aos EUA, a fuga de bote, necessidade de ler urgentemente os livros antes deles serem queimados…
Ao longo desses relatos vamos entendo que o objetivo da artista é se encontrar na história fronteira onde a “história da minha família” começar e termina ao mesmo tempo que a “minha história tem seu ponto inicial a partir deles”.
A difícil relação do pai de Thi com seu próprio pai ecoa nas estruturas familiares e na maneira pouco prática com que este homem deslocado de sua terra natal cria seus próprios filhos na ausência da esposa, uma mulher que, diferente do marido, nasceu e uma família abastada, estudou em boas escolas e não conheceu as dificuldades que tornaram seu marido um homem duro e silencioso.
Mas esses relatos ilustrados não são duros ou cínicos ou excessivamente melancólicos e menos ainda melodramáticos; dona de um texto bonito, funcional e que dosa bem objetividade e lirismo, Thi nos guia auxiliada por uma arte essencialmente simples, porém funcional, toda em preto e branco permeada por tons de vermelho em todas as páginas usado ora como elemento de suporte, ora como elemento lírico que sustenta o aspecto de memória, sonho, realidade evanescente…
Mas acredito que há um elemento mais forte nessa cor vermelha que acompanha Thi, seus pais, suas memórias e claro, nós, leitores. A cor em si é símbolo de uma infinidade de sentidos e interpretações, mas acho que a artista quis deixar aqui para todos nós algo pairando no ar e na percepção geral: um elemento de ligação? uma mancha que percorreu um imenso caminho de sua terra natal até seu novo lar no país que seu próprio povo combateu? uma sensação marcada pela presença de tudo que está ausente agora? Realmente não sei, só sei que está lá, sempre estará lá, e nos foi deixada por Thi Bui
Para além do relato individual de seus pais, a história oral legada para Thi Bui transformar nessa belíssima Graphic Novel é um relato ímpar do ponto de vista de quem esteve lá nas agruras de um guerra que chocou o mundo, mas que constantemente nos é trazida pelo viés americanizado desse fato histórico tão importante e tão cheio de imagens que marcaram o século XX e que, por vezes, refletiam apenas uma pequena faceta de um prisma muito mais complexo.
A visão de O Melhor que Podíamos Fazer é de suma importância não só pela parte histórica, mas acima de tudo por que é uma parte histórica contada por quem de fato pertence esta história, somado a isso o fato de ser um tema atualíssimo mesmo quando se apoia em um fato de quase meia década: refugiados estão embarcando a cada instante pelo mundo em barcos, balsas, botes ou canoas em busca de um novo lar ou simplesmente de qualquer lugar minimamente melhor do que o chão em que estava.
Thi Bui ao registrar em texto, ao ilustrar a trajetória de sua família e sua própria trajetória acaba falando por dezenas de milhares de imigrantes que vieram antes dela, que continuam vindo depois dela e que deixa para trás uma vida inteira, mas trazendo outra inteiramente nova consigo.
Singelo e delicado em muitos pontos O Melhor que Podíamos Fazer também consegue ser algo triste e em muitas situações algo bem, bem cruel, porém sem nunca perder aquele laço de reconhecimento universal que parece estar contido em todas as famílias do mundo: amor.
Acredito que essas características integram o hoje já vasto leque de HQs adultas e de cunho mais pessoal/autoral como Maus (Art Spielgelman), Persépolis ((Chris Ware), O Escultor (Scott McCloud), Não era você que eu esperava (Fabien Toulmé), O Que Aconteceu Ao Homem Mais Rápido Do Mundo? (Dave West) entre outras inúmeras obras de qualidade inegável e que já figuram nas muitas listas de HQs indispensáveis para qualquer fã desta arte que vem ganhando o mundo e cada vez mais, alçando os Quadrinhos para patamares elevadíssimos. ), Retalhos (Craig Thompson), Pílulas azuis (Frederik Peeters), Asterios Polyp (David Mazzucchelli), Jimmy Corrigan – o menino mais esperto do mundo
O Melhor que Podíamos Fazer foi lançado em 2017 e está disponível no catálogo da Editora Nemo, podendo ser adquirido nas principais lojas e livrarias on-line.
O Melhor que Podíamos Fazer | A Autora
Thi Bui nasceu no Vietnã e imigrou para os Estados Unidos ainda criança. Estudou Arte e Direito e considerou se tornar uma advogada de direitos civis, mas, em vez disso, virou professora de escola pública. Bui mora em Berkeley, Califórnia, com os filhos, o marido e a mãe. O melhor que podíamos fazer é sua primeira graphic novel.
Esta é uma história de busca por um futuro melhor e de saudosismo pelo passado. Explorando a angústia da imigração e os efeitos duradouros que o deslocamento tem sobre uma criança, Bui documenta a difícil fuga de sua família após a queda do Vietnã do Sul, na década de 1970, e as dificuldades que enfrentaram para construir uma nova realidade.
O melhor que podíamos fazer traz à vida a jornada de Thi Bui em busca de compreensão e fornece inspiração a todos aqueles que anseiam por um futuro melhor, enquanto recordam o passado de privações.
- Autoria: Thi Bui
- Tradução: Fernando Scheibe
- Páginas: 336
- Formato: 17 x 24 cm
- Acabamento: Brochura
- Título original: The Best We Could Do
- ISBN: 9788582864135
- Área temática: Graphic Novel
- Edição: 1
- Mês/Ano de publicação: 09/2017
- Editora Nemo
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Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.