Se há uma constante na cultura humana, definitivamente essa constante é a guerra. Não importa de que país você seja, qual a cor de sua pele, que idioma você fala, qual origem de seu nome ou de sua família: a guerra já cruzou com o passado de todos nós.
Que seja apenas no passado histórico ou nos livros didáticos ou de Literatura: a guerra é parte da história de nossa espécie e, muito provavelmente, estará lá no fim de todas as coisas de algum modo.
É mais ou menos isso que Joe Haldeman, ex-combatente americano na Guerra do Vietnã, pôs em seu sublime livro Guerra Sem Fim (Forever War, 1974), uma alegoria a essa mesma guerra do Vietnã na qual lutou, mas que no fim das contas a obra se tornou uma alegoria de todas as guerras, de ontem, de hoje e de amanhã.
Não à toa Guerra Sem Fim está sempre muitíssimo bem recomendado em listas variadas de Sci-fi ao redor do mundo.
Em guerra contra tudo e contra todos
Estar em guerra parece ser algo completamente natural, até mesmo animais irracionais estão em constante guerra, mas ao menos a deles é compreensível: guerra por sobrevivência, puro instinto de pegar o essencial para sobreviver num deserto, numa floresta, nos oceanos, no ar que respiramos…
Até os menores e mais imperceptíveis organismos de nossa ecologia estão em constante guerra pela sobrevivência.
E isso, repito, é fácil de entender, não há diálogo, mas também não há excessos, não há matança desenfreada, apenas equilíbrio natural perfeitamente controlado, um jogo honesto na cadeia alimentar, por assim dizer.
Não há genocídio, a natureza vai indo em seu rumo perfeitamente natural do “pegue o que você precisa e vá embora“.
Mas aí veio nossa espécie e desequilibrou o jogo ecológico. Apesar de travarmos guerras ecológicas como qualquer outro organismo vivo, nossa existência sobre o planeta é perfeitamente pautada por excessos e abusos: se precisamos de recursos, o que nos é necessário não é o bastante, é preciso mais e mais até que algum tipo de limite seja atingido e, quando o limite é a existência de outra forma de vida, a extinção não é um obstáculo para nós.
Está no caminho? Então vai ser retirado. Nosso combate é sujo, é exagerado, é predador, é violento e acima de tudo covarde. Lutamos por pedaços de terra, por pedaços de metal ou madeira, lutamos por água, por expansão ou apenas porque o outro é isso, OUTRO.
Joe Haldeman sentiu isso na pele literalmente como ex-combatente de uma dessas guerras cheias de desmandos e desmotivos. Condecorado por ferimentos de guerra, Haldeman voltou para casa apenas para constatar, assim como muitos de seus companheiros de batalha, que aquele país, os EUA pós-Vietnã, não era mais sua casa.
Culturalmente diferente, economicamente em mudanças, uma crescente liberdade guiando a nação a novos rumos, cada soldado era somente uma relíquia da guerra, nenhum deles tinha um “museu” para chamar de lar, estranhos em sua própria terra, o combate começou a parecer um “lugar” melhor, lá ao menos existia a chance de levar um tiro na cabeça e partir sem sentir nada.
Mas Haldeman não voltou à guerra e suas angustias foram postas no papel e o resultado é o brilhante Guerra Sem Fim, considerado um dos melhores e mais instigantes romances de Sci-Fi sobre guerra. Ao por naquelas páginas suas aflições, angústias e frustrações, Haldeman acabou criando uma obra honesta, limpa, crua em sua forma direta de dizer as coisas que o autor queria dizer.
Ao se basear em suas experiências em uma guerra específica, o autor acabou por conseguir o grande feito das verdadeiras boas obras: partir de um recorte específico, particular e pessoal demais para uma ampla e abrangente generalização do tema: precisamos falar sobre GUERRA… não a do Vietnã, não a Segunda Grande Guerra, não a Guerra das Malvinas… qualquer guerra em qualquer lugar.
Guerra Sem Fim | Vamos para a constelação de Touro
Em um tipo de realidade alternativa a nossa, no ano de 1996 o soldado William Mandella é recurtado pela Força Exploratória das Nações Unidas – FENU (United Nations Exploratory Force no original) para ir até um portal colapsar como parte de seu treinamento para uma guerra interestelar.
Os portais surgiram sem muita explicação, mas sua forma de “funcionamento” e seus benefícios foram compreendidos pelos humanos e utilizados para expandir nossa participação no universo infinito.
Grandes estruturas que ligam diferentes pontos do espaço, os portais colapsares levam nossa raça para outras galáxias em uma fração de minutos ou horas… ao menos no que se refere aos passageiros das granes naves que os atravessavam.
Semanas e meses são necessários para atravessar o sistema planetário no universo de Guerra Sem Fim, mas a partir do momento que as grandes naves espaciais atravessam um colapsar é questão de segundos até sair do outro lado em uma galáxia muito, muito distante.
Mas o cuidado de Haldeman em brincar com altíssimas velocidades está sempre sendo pontuado ao longo de sua narrativa: os fatores de desaceleração em velocidades próximas à da luz, os efeitos relativísticos de tais valores tão grandes de aceleração, os efeitos gravitacionais entre outros acabam parecendo sempre para tornar as coisas ainda mais complicadas num salta colapsar.
A trama que o livro apresenta é praticamente unilateral: é única e exclusivamente o ponto de vista de Mandella tendo de ir até sua primeira missão e de lá para outras tantas, cada uma mais difícil e distante que a anterior, o que torna os efeitos das velocidades relativas ainda pior sobre a vida do soldado.
Como todos os membros de seu grupo, Mandella precisou passar por um intenso treinamento para a utilização dos trajes de combate, misturas de armaduras táticas com traje de sobrevivência para ambientes hostis.
Nesse treinamento havia de tudo um pouco: experiências de tiro com as armas laser do traje, montar bases de operação nos planetas visitados que possuíam portais colapsares em suas órbitas, reparos em bases já existentes entre outras tarefas dentro da convocação da FENU…
Ser soldado na Federação exigia muito mais do que atirar em homenzinhos verdes de outro mundo, antes mesmo de que se pudesse ver um marciano briguento, muitos eram os recrutas que morriam em decorrência de acidentes nos planetas e nas obras de reparos e construção de infraestrutura.
Guerras em casa, guerras nas estrelas
Haldeman divide seu foco narrativo expondo duas frente para Mandella, a primeira é justamente a partida do soldado para a guerra que os humanos travam com a raça batizada por nós como Taurianos, seres cuja provável origem esteja situada nas proximidades da estrela Aldebarão na constelação de Touro.
Nesse sentido acompanhamos inicialmente a jornada de Mandella, clara metáfora ao caminho do próprio Haldeman, nos meandros da estrutura militar e na cadeia de comando, seu relacionamento com os demais soldados de seu pelotão e o aprendizado das técnicas de utilização do traje de combate, ao que tudo indica, um dos pontos que mais parece ter a atenção de Haldeman na narrativa.
Nesse primeiro rumo a obra segue até o primeiro confronto entre a tropa de Mandella e os Taurianos em um de seus postos avançados. Aí a coisa toda muda de figura e toda a burocracia militarista dá lugar a um combate unilateral alucinado entre as forças humanas e os alienígenas numa carnificina descrita com tensão e precisão angustiantes.
Apesar de serem humanos contra uma raça não claramente descrita, percebe-se que a crueza do que Haldeman viu em seu período no Vietnã está ali fortemente influenciando as impressões que o autor nos passa com seu texto ágil.
Com poucos detalhes subjetivos, a narrativa de Haldeman ganha, ao menos nesse ponto do livro, força em sua maneira direta e cirúrgica de descrever a sequência de cenas do combate, deixando em seu leitor um “gosto” ruim de fumaça acre de corpos calcinados…
Se Haldeman não é um detalhista compulsivo, não se deixe iludir, ele é um narrador fantástico de fatos e ações.
Com seu texto ágil o autor prende a atenção do leitor e mesmo quando alterna do estado de alerta máximo dos soldados para o combate frenético, descoordenado e quase insano que se segue, no mesmo embalo cessa as hostilidades e mantém a atenção para a situação toda sem perder o fio condutor de sua trama: ali está o outro, eu não o compreendo, não conseguimos nos comunicar, ele precisa ser destruído antes que eu seja.
A segunda abordagem do autor diz respeito aos inúmeros confrontos de ordem psicológica, cultural e moral pelos quais seus personagens são submetidos.
O primeiro retorno dos soldados ao planeta Terra é seguido do choque extremo sofrido devido ao fluxo do tempo cronológico do planeta contra o tempo subjetivo dos viajantes que cruzaram os colapsares em velocidades próximas à velocidade da Luz.
Mandella e seu pelotão passaram aproximadamente 4 anos em viagens sucessivas, coincidindo com seu primeiro tempo de alistamento, enquanto que na Terra cerca de 30 anos haviam se passado.
Os choques são os mais diversos e variados possíveis: a economia mudou e é quase totalmente direcionada aos esforças de guerra, o planeta é praticamente comando pela FENU; a crise econômica gerou uma multidão absurda de desempregados, a fome é uma realidade em escala global, a tecnologia mesmo evoluindo bastante acabou sendo algo extremamente restrito; os feudos familiares para produção de alimentos para a própria subsistência por incentivo dos governos se tornaram uma alternativa atrativa para os que querem fugir da crise nas grandes cidades; a violência é uma constante a cada esquina com gangues de delinquentes, assaltantes, drogados e assassinos.
Diante desse mundo em frangalhos Mandella tenta encontrar a Terra de 1996 ou algo minimamente próximo disso ao lado da soldado Marygay Potter com quem dividiu sua cama muitas vezes durante a primeira incursão pelos colapsares e que acabou se tornando “seu par fixo” ao longo das viagens.
O casal cogita, ainda que cheio de dúvidas, a possibilidade de permanecer na Terra e começar uma vida nova com os juros de seus pagamentos da FENU, a essa altura do campeonato, quase 30 anos depois, uma pequena fortuna.
Guerra Sem Fim | Lá e de volta outra vez
Mas as coisas são bem piores do que parecem e podem ficar ainda mais ruins. Os planos do casal vão se perdendo num mundo que não é mais o que eles haviam deixado para trás e lhes tira ainda mais do que o tempo de alistamento nas fileiras da FENU.
Mandella e Marygay retornam para seu pelotão e partem novamente para os colapsares para deter a ameaça tauriana em algum lugar. Aí mais uma vez Haldeman foca sua narrativa nos processos burocráticos da guerra e em combates ainda mais viscerais, mesmo quando esses combates duram apenas “alguns parágrafos”. O fato relativístico que tanto afeta os personagens humanos também afeta os taurianos cujo poderio tecnológico evolui e se aperfeiçoa ao longo dos efeitos da relatividade.
Um soldado humano que deixou a Terra 30 anos atrás poderia estar enfrentando uma tropa tauriana que deixou seu mundo há apenas alguns meses e com o que havia de mais moderno por lá.
Os saltos relativísticos põe Mandella ao lado de jovens soldados do futuro, todos mais novos do que o agora sargento coisa de dois ou três anos, mas pode pertencer ao século XX, Mandella é tratado quase como se fosse um ancião. Os conflitos de geração são elevados a potência máxima em todas as direções, refletindo, mais uma vez, a condição de Haldeman através da visão de Mandella.
Inclusive a diferença entre como os seres humanos começam a nascer, não mais pelos processos biológicos do sexo entre homens e mulheres, mas sim através de inseminações especiais e câmaras de gestação sem a necessidade de uma mãe biológica para gestar um bebê por 9 meses; todos, por sinal, são de certo modo “propriedade da FENU”, a quem devem suas vidas, estudos e profissão…
O autor também constrói em sua narrativa aparatos tecnológicos para dar essa noção de avanço no campo dos combates espaciais entre raças inimigas.
Os próprios trajes espaciais, aparatos que são claramente os xodós do autor, vão ganhando mais e mais inovações e funcionalidades para o combate, aliados aos campos de estase, uma tecnologia que cria uma área de proteção que desacelera o interior do campo e tudo que não está num traje de combate simplesmente desacelera a uma taxa mortal, reduzindo a velocidade de batimentos cardíacos, circulação de fluídos vitais e demais funcionalidades orgânicas, um verdadeiro terror para os taurianos no campo de batalha.
Guerra Sem Fim é um belo livro, mesmo com todas as mazelas da guerra que narra e representa, Haldeman entrega a seus leitores uma narrativa também singela, com momentos de reflexão, desejos de um futuro em algum lugar que ainda aceita soldados sem pátria.
A busca constante pela noção de pertencimento norteia cada página do livro que, mesmo econômico na quantidade de personagens atuado, tem força suficiente para se sustentar em Mandella e em suas interações com outros tantos personagens que, pela dinamicidade da história, acabam aparecendo rapidamente, cumprindo seu papel e literalmente ficando no passado devido a algum novo salto pelos portais.
Mas independente das questões subjetivas da obra, Haldeman pontua Guerra Sem Fim com cenas espetaculares de ação, sobretudo a extremamente tensa batalha final nos confins da galáxia para defender o que se acreita ser o portal colapsar mais próximo do mundo de origem dos taurianos.
Já li uma boa quantidade de livros, mas Haldeman me impressionou bastante com a tensão dessa batalha, a velocidade e perigo com que as coisas acontecem e como o autor descreve o estado de espírito de seus personagens encurralados entre o inimigo e um mundo hostil por si só; e sem tirar o pé do freio, o que se segue é uma das mais belas passagens derivadas dos efeitos relativísticos dos portais, deixando ali, faltando poucas páginas para o final, a lição de que os brutos também amam e sim, em algum lugar há uma pátria para chamar de lar para todos os soldados.
Misto de autorreflexão, ação de ótima qualidade, Sci-fi sobre guerra e batalhas espaciais, Guerra Sem Fim é, de algum modo estranho, uma obra com pés bem fincados no chão, Haldeman pouco extrapola a ciência convencional e quando o faz, não há muito ali que não se possa imaginar.
Talvez algum purista exigisse que o escritor tivesse se dado mais trabalho em explicações, mas Guerra Sem Fim não carece delas, a “ciência” ali presente age mais como um pano de fundo ou uma engrenagem auxiliar ao movimento da narrativa.
O livro é aquele Sci-fi reflexivo, meio nostálgico, um tanto melancólico de uma lado e por outro é um livro dotado de um humor ferino e uma ironia mordaz que surge aqui e ali para nos lembrar que em certas ocasiões é preciso olhar nos olhos da dona morte e, quando ela sorrir, você sorri de volta.
Dito tudo isto, Guerra Sem Fim, não à toa, integra aquelas tantas listas que falei logo no comece desta resenha, obra que se lê quase de um fôlego só, violento e inventivo, é um convite ao combate ao lado de Mandella, um dos combatentes mais despreparados da história da Sci-fi sobre guerra, ainda assim um personagem fantástico.
P.S.: As ilustrações utilizadas nesta resenha são da adaptação do texto de Haldeman para uma Graphic Novel em quatro partes.
Guerra Sem Fim | Sinopse e Ficha Técnica
Escrito em 1974, o livro conta a história do soldado William Mandella, mandado para o espaço nos anos 90 para lutar em uma guerra para combater os misteriosos taureanos. Depois de dois anos de serviço ele volta à Terra, mas uma dilatação no tempo provocada pela viagem fez com que esses dois anos durassem muito mais.
Ou seja, quando Mandella retorna para casa após servir por dois anos, quase três décadas se passaram na Terra. E quanto mais longe ele for no espaço, maior será essa dilatação.
Um grande clássico da ficção científica que mostra como a guerra cria um distanciamento entre os veteranos e a sociedade que os envia para lutar.
- Título: Guerra sem Fim
- Autor: Joe Haldeman
- Editora: Landscape
- Edição: 1
- Ano: 2009
- Idioma: Português
- Especificações: Brochura
- Páginas: 304
- ISBN: 978-85-7775-081-8
- Dimensões: 210mm x 140mm
Compre Guerra Sem Fim na Amazon AQUI
Sobre o Autor
Designer de produtos e gráfico, mestre em comunicação, professor.